Por Reynivaldo Brito
Existe uma diferença subjetiva, tênue e maleável na fronteira entre o que entendemos por arte e o artesanato. Hoje vemos artistas usando tecidos criar a sua arte e variados tipos de suporte para se expressar. Outros empregam miçangas,tampinhas de garrafas pety, crochés e cerâmicas antes tidos como objetos de decoração e utilitários de artesanato apresentados e aceitos como obras de arte e expostos até em galerias e museus e outros espaços de renome internacional. Recentemente descobriram um ferreiro que fica num daqueles arcos da Ladeira da Conceição, em Salvador, e que além de grades de ferro e cadeiras ele fazia Exus e outros Orixás que eram vendidos para lojas de artesanato e os barraqueiros do Mercado Modelo. Hoje seus Exus e orixás foram alçados para as galerias e ganharam status de obra de arte. Também estamos acostumados a ver e adquirir nas feiras livres e em outros locais por este Brasil afora peças de artesanato feitas como objetos utilitários e de decoração, e até mesmo como brinquedos da criançada e que são considerados obras de arte. Basta um crítico ou artista renomado mostrar a sua importância criativa. Lembro quando criança dos bois de barro, bonecas de pano, os carros de boi, o mané gostoso que eram feitos de barro e madeiras e vendidos por artesãos vindos das roças na feira de Ribeira do Pombal-Ba. Esses brinquedos eram adquiridos pelos pais para os filhos brincar. Depois vieram os brinquedos plásticos e eles perderam a sua primazia. Mas, ainda existem e teimam em permanecer. Tenho comigo um carro de boi todo esculpido em madeira que pode ser considerado uma obra de arte, se for olhado por este prisma atual.
Alguns estudiosos entendem que essas manifestações artísticas muitas vezes são transmitidas de gerações para gerações, enaltecem suas habilidades manuais e dizem terem valor como obra de arte. Outros discordam, principalmente àqueles arraigados aos ditames das academias. e consideram até objetos Kitsch de gosto discutível, mediano. Lembro que a festejada arquiteta Lina Bo Bardi criadora do Museu de Arte Moderna da Bahia também criou um Museu de Arte Popular, que funcionava num dos galpões ao lado do prédio principal do Solar do Unhão. Seu acervo era composto de belas peças ditas do artesanato recolhidas não só na Bahia como em outros estados.
Evidente que eram peças diferenciadas, que realmente continham alguma significância de arte. Este museu foi fechado e e algumas peças estariam no Museu do Solar do Ferrão, outras sumiram misteriosamente. Recordei agora de um artesão de Cachoeira-Ba que fazia Exus, galinhas d’angola e pombas suspensas por uns palitos reunidas num pedestal de barro, formando uma bela composição. Até mesmo o navio que existia e que fazia a travessia daquele município até Salvador ele reproduzia no barro. Bom destacar também os potes, moringas e tigelas e outros objetos criados pela ceramista Ricardina Pereira da Silva, mais conhecida como Dona Cadu . Ela residia na localidade de Coqueiros, município de Maragogipe-Ba, e morreu recentemente aos 104 anos de idade. Todos eram antes comercializados como peças utilitárias ou de decoração, e hoje são aceitos como obras de arte. Quanto a obra de arte tem um propósito de apresentar o belo ou um símbolo. Tem sua função artística própria e pode ser apresentada em vários suportes e formas como a pintura, a escultura, a música, dança, teatro e cinema.
Fiz esta introdução para falar de Ana Laura Lacerda que é uma baiana que vem fazendo um trabalho diferenciado usando apenas conchas e búzios de várias origens, cores e tamanhos, a maioria focados na defesa do meio ambiente e tendo como temática a flora brasileira . De posse deste material natural, recolhido nas praias e até mesmo no fundo do mar e dos rios ela vai juntando, classificando e criando suas peças usando como suporte pedaços de madeira de lei com a intenção que durem um bom tempo. Ela estudou até o segundo ano na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. Mas, por questões pessoais abandonou a faculdade e foi trabalhar no segmento de eventos onde permaneceu alguns anos. Hoje está totalmente voltada para esta atividade de lidar com as conchas e búzios e vem desenvolvendo com a intenção de apresentá-lo como obra de arte.
Por temperamento e formação não gosto de julgar e desestimular ninguém. Ao contrário, ao longo da vida sempre tentei ajudar divulgando obras das pessoas que gostam e se expressam através da arte, principalmente os iniciantes. O tempo e o mercado se encarregam de mostrar quem faz uma boa arte ou não. Portanto, não estou aqui julgando se é artesanato ou uma obra de arte o que faz a Ana Laura Lacerda. Isto vai depender dos conceitos de cada um e das informações que dispõem. O que pude constatar é que algumas dessas peças têm uma composição criteriosa e que o colorido natural das conchas e búzios por si só já nos encantam. Evidente que alguns vão dizer que são peças mais apropriadas para decorar casas e estabelecimentos comerciais que estão próximos ao mar ou mesmo de cidades banhadas pelas águas de um oceano ou de um rio pela sua especificidade.
Na conversa que tive com a Ana Laura Lacerda ela disse que tem peças que demora até dois meses para concluir, e que esta sua busca em se manifestar através das conchas e búzios é antiga. Tem uma preocupação com a natureza, inclusive consultou o órgão responsável pela conservação e defesa do meio ambiente em nosso Estado e obteve a resposta que ela não estava praticando qualquer ato que viesse a prejudicar a natureza. A maioria dos materiais que utiliza é coletado por marisqueiras da localidade de Gameleira, na ilha de Itaparica, e que mantém uma relação com elas há mais de 40 anos. Algumas delas são filhas das que lhes forneciam nos anos 80. Também adquire em Salinas e na ilha dos Frades. Essas mesmas marisqueiras vendem conchas e búzios em forma de colares, pulseiras e brincos para os barraqueiros do Mercado Modelo os quais são adquiridos por turistas. Algumas conchas e búzios são coletados em rios e praias do Norte do país, que a artista compra no Mercado Modelo. Ela informou que fica buscando conchas e búzios diferentes para criar novas composições. Não trabalha com corais, estrelas do mar e cavalos marinho por serem proibidos e frágeis. Relatou que tem duas peças no Hotel Catussuba, no bairro de Stella Maris, em Salvador-Ba, produzidos há algumas décadas e estão perfeitos. Recentemente fez várias peças para uma casa numa ilha da Baia de Todos os Santos, inclusive o piso de entrada do imóvel usando conchas e búzios. Numa dessas composições ela fez este mapa do Brasil que denominou de a Amazônia Azul. É uma peça que chama a atenção pela plasticidade e o interesse atual pelo meio ambiente.
Confesso que já tinha visto trabalhos feitos com conchas e búzios, especialmente colares, brincos, pulseiras e espelhos e até tampas de mesas, porém as peças de Ana Laura Lacerda são diferenciadas e trazem a beleza natural dos peguaris vermelhos e brancos, das conchinhas bagos de jaca, e de búzios de várias tonalidades e tamanhos criando belas composições. Ela não usa tintas porque as conchas e búzios têm seu brilho natural e também desenhos próprios. Ana Laura vai colando as conchas e búzios no suporte de madeira criando desenhos geométricos, usando de tamanhos diferentes para que tenham uma harmonia.
A propósito escreveu o artista Calasans Neto “Ana Laura é o poema da menina, o mar, as conchas e os búzios numa arrumação entre a natureza e as mãos criadoras. Todos os encantos do mar foram agrupados de forma a produzir efeitos além da natureza visual. Não é uma simples arrumação, é um perfeito entendimento entre a força criadora e os mistérios do mar.”