Por Gilfrancisco
Ao amigo Haroldo de Campos (1929-2003) que me introduziu no vidente mundo muriliano.
Murilo Mende foi uma das mais interessantes e controvertidas figuras do mundo literário brasileiro, um poeta difícil e, por isso mesmo, pouco divulgado. Tinha uma personalidade desconcertante. Sua vida também constitui uma obra de arte, cheia de passagens curiosas de acontecimentos inusitados, que amava Mozart e ouvia suas músicas de joelhos na mais completa ascese mística, não permitindo que os mais íntimos se acercassem dele nessas ocasiões e certa vez telegrafou a Hitler protestando em nome de Mozart contra o bombardeio de Salzburg.

Na mais completa liberdade de ação, sempre mergulhando no âmago das coisas, sua magnífica obra, além de bastante extensa, compreendendo cerca de doze livros de poemas, três em prosas e vários inéditos, está exigindo um estudo aprofundado, onde se possa aquilatar com justiça seus altos méritos, já iniciados pelos ensaístas Haroldo de Campos (1929-2003) e José Guilherme Merquior (1942-1991), ambos falecidos. Poeta excêntrico e inquieto, perquiridor, está completando 32 anos de morto, mas festejado em absoluto silêncio.
Pouco citado e omitido em antologias e estudos sobre o movimento de 1922, Murilo Mendes é hoje um poeta que tem uma obra definida, pessoal, livre de alguns chavões do próprio grupo modernista, poeta alheio a grupos, sempre trabalhando isoladamente, construiu uma obra bastante pessoal, enriquecendo-se de um universo linguístico, quando na experimentação formal, a cada novo livro publicado.
Inúmeras foram suas aventuras intelectuais inconformistas: “ conciliador de contrários, incorporador de eterno ao contingente”, como disse Manuel Bandeira, procurou restaurar em colaboração com Jorge de Lima, a poesia em Cristo, intentou disciplinar o caótico e o pânico, aspirou a inaugurar no mundo o estado de confusão transcendente, contendo a abundante inspiração e a contundente inventiva nos versos de intensas sintaxes e insuperável rigor.
Murilo Monteiro Mendes nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 13 de maio de 1901, onde iniciou seus estudos primários e secundários, continuados em Niterói, mas logo interrompidos. A partir de 1920, fixa residência no Rio de Janeiro e torna-se pouco depois amigo do pintor Ismael Nery, que teria grande influencia em seu espírito. A década de 20 é a do desenvolvimento do movimento modernista, que eclode com a Semana de Arte Moderna, em São Paulo no ano de 1922. Apesar de não ter participação ativa, o poeta declara:
Em 1922 eu estava no Rio, olhando de longe e com simpatia o movimento, mas sem aderir oficialmente, porque nunca tive instinto gregário, o que sempre me impediu de fazer parte de qualquer grupo.
Mário de Andrade assinala no seu famoso ensaio A poesia em 1930, diz que esse ano, o que marca a poesia brasileira é a publicação de quatro livros, Alguma Poesia, Carlos Drummond de Andrade; Libertinagem, Manuel Bandeira; Pássaro Cego, Augusto Frederico Schmidt e Poemas de Murilo Mendes:
Todos são poetas feitos, e embora dois deles só aparecem agora om seus primeiros volumes, desde muito que podiam ser poetas de livro. Mas quiseram escapar dos desastres quase sempre fatais da juventude. Se fizeram e fazem versos não é mais porque sejam moços, mas porque são poetas. [1]

Mário refere-se aos estreantes Drummond e Mendes. Sobre o livro afirma ele:
Historicamente é o mais importante dos livros do ano. Murilo Mendes não é um surrealista no sentido de escola, porem me parece difícil da gente imaginar um aproveitamento mais sedutor e convincente da lição surrealista. Negação da inteligência superintendente, negação da inteligência seccionada em faculdades diversas, anulação de perspectiva psíquicas, intercâmbios de todos os planos, que não exemplifico porque são todo o livro. O abstrato e o concreto se misturam constantemente, formando imagens objetivas.
Com a publicação de Poemas, modesta edição impressa em Juiz de Fora, paga por seu pai e prêmio da Fundação Graça Aranha, inicia-se nessa época, um segundo momento do modernismo, menos voltado para as contestações e mais voltado ao desenvolvimento de suas ideias. A partir de então, temos um Murilo Mendes modernista, surrealista, místico, messiânico, anárquico, barroco, católico e vanguardista. Os poemas dessa primeira fase, aparecem casos típicos de antropofagia, como por exemplo, o da Família Russa no Brasil, vitimado pelo caráter antropófago da nossa civilização, que Oswald de Andrade por uma das extraordinárias intuições soube em evidência, num movimento cuja significação capital, somente anos depois poderiam reconhecer:
O Soviete deu nisto,
seu Naum largou de Odessa numa chispada,
abriu vendinha em Botafogo,
logo no bairro chique.
Veio com a mulher e duas filhas,
uma delas é boa posta de carne,
a outra é garotinha mas já promete.
A publicação desse livro, considerado como “um dos poetas mais interessantes desse momento”, atingindo à riqueza e obtendo todo o rendimento do seu lirismo, numa imersão definitiva e fatal. É uma obra em que o poeta é um homem para quem o mundo exterior existe. Murilo trouxe uma contribuição pessoal e nova que bastaria para assinalar o desejo de uma forma essencial, isenta de qualquer intemperança efusiva. Ou seja:
Com o sr. Murilo a poesia brasileira parece ter perdido irremediavelmente o pé. Dir-se-ia que nenhum ponto de apoio, nada mais, a sustém, e que ela voga equilibrando-se como pode, ao sabor das ondas insubordinadas da imaginação. [2]
Seu segundo livro História do Brasil, onde os fatos da história brasileira são demolidos anárquica e irreverentemente, numa atitude que se aproxima da desmoralização, mas cujo intento é rever a história de uma outra ótica, opondo-se aos manipuladores de interesses. Esse livro que segundo Aníbal Machado é mais fiel que a de Rocha Pombo, mais sintético que a de João Ribeiro, e a única verdadeira:
É sem dúvida o primeiro de versos sobre os fatos do Brasil, onde o poeta colheu as passagens mais graves dos quatrocentos anos de nossa existência política para o registro sóbrio e pitoresco.
Vejamos Preparativos da Pescaria:
Qualquer dia eu dou um grito,
Mando às favas Portugal,
Toda a corte de Bragança.
Qualquer dia dou um cascudo
No tal de ministro inglês.
Meu pai não fez coisa alguma
Por vocês, ó vrazileiros.
Se meu pai disse que fez
Ele mente pela gorja.
O que fez o rei de bem
Não foi ele, meus meninos,
Foi o conde de Linhares.
Apesar dos versos provocarem risos e o imprevisto da linguagem que nele parece uma vocação, no fundo do que se mostra como mera brincadeira, existe um tom de melancolia disfarçada. A vivacidade crítica salta da primeira à última página da História do Brasil, cuja leitura é um prazer, onde o autor se mete nos assuntos mais sérios para apreciá-los com leveza sintética e sutil. É um livro de humor, mas também de pensamento, extraindo conceitos impressionantes de fatos que em outros provocariam apenas a deformação da charge ou da paródia. Uma obra destinada a fazer sorrir, mas também não raro a meditar.
Tempo e Eternidade, título referente a uma passagem bíblica em que narra u episódio de solidariedade ao cristo, lançado em 1935, juntamente com o poeta alagoano Jorge de Lima (1893-1953). O livro reúne dois autores de temperamento e expressão diversa, mas unidos na causa pelo mesmo desejo de servir liricamente o credo religioso que os empolgou. Com esse livro, Murilo parece ter abandonado para sempre o culto do “epigrama cortante” que todos retinham na memória e todos os amigos do humor repetiam. Agora, o que lhe interessa é cantar aquelas entrevisões da alma profunda em que se comprazem os iluminados da poesia católica. Vamos encontrar ainda, uma poesia totalmente rumo a Deus; ao contato de Deus, tudo se diviniza. Todo o seu fervor, todo o seu grande deslumbramento vem de Deus e vão para Deus. É dali que vem o sentido universal, amplo, envolvente e grandioso da poética de Murilo Mendes, todas virtudes cristãs, principalmente a piedade. O coautor da coletânea, é o poeta serenidade, da majestade e do amor a Deus, o poeta do deslumbramento divino:
Eu sou da raça do Eterno.
Fui criado no princípio
E desdobrado em muitas gerações
Através do espaço e do tempo.
Sinto-me acima das bandeiras,
Tropeçando em cabeças de chefes.
Caminho no mar, na terra e no ar,
Eu sou da raça do Eterno,
Do amor que unirá todos os homens:
Vinde a mim, órfãos da poesia,
Choremos sobre o mundo mutilado.
A Poesia em Pânico (1936-1937), publicada no ano seguinte, é uma obra onde o autor das Metamorfoses (1941), tenta conciliar a sua existência aprisionada com a criação poética libertadora. É a bipartição entre Deus e a Musa, pois a igreja lhe disputa o amor da Musa, esta vence e recolhe o amor que deveria ser consagrado à igreja, e o poeta fica em pânico a identificar mulher e pecado, segundo a linha que vem da Tentação e da Queda. O tom é de denúncia e atemática central dessa é à procura da conciliação, e o próprio poeta nos diz o seguinte:
Preocupei-me com a aproximação de elementos contrários, a aliança dos extremos, pelo que dispus muitas vezes o poema como um agente capaz de manifestar dialeticamente essa conciliação, produzindo choques pelo contato da ideia e do objeto díspares, do raro e do cotidiano, etc. Palavras extraídas tanto da bíblia quanto dos jornais, procurando mostrar que o social não se opõe ao religioso.
Eu me sinto um fragmento de Deus
Como sou um resto de raiz
Um pouco da água dos mares
O braço desgarrado de uma constelação.
A matéria pensa por ordem de Deus,
Transforma-se e evolui por ordem de Deus.
A matéria cariada e bela
É uma das formas visíveis do invisível.
Cristo, dos filhos do homem és o perfeito.
Na igreja há pernas, seios, ventre e cabelos
Em toda parte, até nos altares.
Há grandes forças de matéria na terra, no mar e no ar
Que se entrelaçam e se casam reproduzindo
Mil versões dos pensamentos divinos.
A matéria é forte e absoluta
Sem ela não há poesia.

Ainda sobre o livro, Mário de Andrade dedicou um violento artigo, onde procura mostrar os equívocos do seu percurso poético em relação à religião, embora fosse também católico, Mário foi muito infeliz no cometer imperdoáveis erros, ou seja; incompreensão do processo de sua obra, ao afirmar que:
Além de um não raro mau gosto, desmoraliza as imagens permanentes, veste de modas temporárias as verdades eternas, fixa-se anacronicamente numa região do tempo e do espaço o Catolicismo, que se quer universal por definição. Nesse sentido, o catolicismo de Murilo Mendes guarda a seiva de perigosas heresias. [3]
Com o Visionário (1930-1933), Murilo retoma alguns temas já apresentados no seu livro de estreia, ao questionar o mistério do tempo:
que se manifesta simbolicamente na mulher, guardiã, em seu copo, da semente que faz brotar a vida, pois seu ventre é o depositário do passado e do futuro, amadurecendo e se renovando a cada gestação. Vejamos Choro do poeta atual:
Deram-me um corpo, só um!
Para suportar calado
Tantas almas desunidas
Que esbarram umas nas outras,
De tantas idades diversas;
Uma nasceu muito antes
De eu aparecer no mundo,
Outra nasceu com este corpo,
Outra está nascendo agora,
Há outras, nem sei direito,
São minhas filhas naturais,
Deliram dentro de mim,
Querem mudar de lugar,
Cada uma quer uma coisa,
Nunca mais tenho sossego.
Ó Deus, se existis, juntai
Minhas almas desencontradas.
Sua primeira tentativa na prosa é O Discípulo de Emaús (1945), composto de algumas centenas de aforismos, em que ele diz: “Passaremos do mundo adjetivo para o mundo substantivo”. Murilo passou por vários estágios, explodindo ou implodindo no seu próprio âmago conflitante. É nessa época, que o poeta colaborou com frequência na imprensa brasileira, escrevendo muito sobre música, como por exemplo em Letras e Artes, suplemento do jornal A Manhã, publicando uma longa série de artigos intitulado Formação de Discoteca, monde revelou seu atuante e profundo conhecimento de música, além de escrever também sobre artes plásticas.
O sensualismo permeado por uma visão mágica é outra área de conflito, que, junto à religiosa e a surrealista, formam a base de sustentação da poesia de Murilo Mendes, como se essas transcendências ou exuberâncias verbais se conjugassem no infinito. Esse conflito, jamais resolvido e sempre renovado, entre forma e transparência, tornou necessário recorrer à noção de polivalência ou autonomia, para compreendê-la e avaliá-la devidamente. Sempre a experimentar novos caminhos formais e temáticos, delineando seu autorretrato, nas suas obras seguintes, evidenciará a indefectível consciência literária, lutando até o fim por conciliar os opostos de sua formação, para ganhar concisão e colocar-se entre os maiores poetas do tempo.
Aparentemente hermético, Murilo Mendes é um dos nossos poetas, que viveu em comunhão mais estreita com o mundo, com as variações sociais, políticas e morais do tempo. Essa era uma das características de sua obra desde Poesia Liberdade (1943-1945), publicado em 1947. Nesse livro, Murilo Mendes apresenta duas séries de poemas enfeixados, que testemunham e refletem o que houve de mais terrível nesses dois anos: a guerra e as decepções provenientes dos efeitos da própria guerra e da paz ainda longínqua. Murilo sabe que a função do poeta é a de ser aquele “ouvido resistente” que “poder perceber o choque do tempo contra o altar da eternidade”. Poesia Liberdade é o grito do homem livre contra o absurdo da guerra, num mundo em que “o homem é a cobaia do homem”, em que “a cruz gerou um universo de cruzes” o poeta vagueia “pelos campos semeados de metralhadoras”. Resulta daí uma poesia de contraste, de conciliação dos contrários, do estímulo de liberdade interior. Vejamos o poema Os Pobres:
Chegam nus, chegam famintos
À grade dos nossos olhos.
Expulsos da tempestade de fogo
Vêm de qualquer parte do mundo,
Ancoram na nossa inércia.
Precisam de olhos novos, de outras mãos,
Precisam de arados e sapatos,
De lanternas e bandas de música,
Da visão do licorne
E da comunidade com Jesus.
Os pobres nus e famintos
Nós os fizemos assim.
Em 1949 o poeta mineiro apresenta-nos Janela do Caos, seleção de seus dois volumes anteriores, e cinco anos depois Contemplação de Ouro Preto (1949-1950), onde a forte dosagem da poesia religiosa se faz presente, sendo o resultado de uma viagem de volta à sua Minas Gerais, não obstante a atmosfera surrealista, o barroquismo domina amplamente e cuja escolha do tema, deva-se a sua importância histórica e sua luminosa beleza. A linguagem profética lhe fornece suas figuras e metáforas, pois a visão tem sempre uma dupla carga: negativa quando se refere ao presente e positiva quando o que vê tocar a eternidade. Segundo Flora Sussekind num brilhante estudo diz ser o poeta “testemunha, olho do mundo, exilado, observador visionário, escravidão: epiteto geralmente atribuídos aos profetas são transferidos em Murilo, para o poeta-profeta”. Vejamos o soneto Montanhas de Ouro Preto, dedicado a Lourival Gomes Machado: [4]
Desdobram-se as montanhas de Ouro Preto
Na perfurada luz, em pleno austero.
Montes contempladores, circunscritos
Entre cinzas e castanho, o olhar domado.
Recolhe vosso espectro permanente,
Por igual pascentais a luz difusa
Que se reajusta ao corpo das igrejas,
E volve o pensamento à descoberta.
De uma luta antiquíssima com o caos,
De uma reinvenção dos elementos
Pela força de um culto ora perdido,
Relíquias de dureza e de doutrina,
Rude apetite dessa cousa eterna
Retida na estrutura de Ouro Preto.
O certo é que desde seu primeiro livro, já estão presentes a dimensão erótica e a inquietação espiritual, visto que alguns críticos de tendências diversas, concordam em apontar sua excentricidade em nossa literatura. O próprio poeta contribui de forma acentuada nesse sentido, com inúmeros poemas onde há caracterização de um “eu” rebelde, múltiplo e desorganizado. Portanto o discurso muriliano entra em cena num momento em que a situação política se encontra em aberto, e exige uma decisão.
Era a Revolução de 1930, o fim da hegemonia da burguesia do café e o aparecimento de uma nova forma de Estado, caracterizada por uma maior centralização, pelo intervencionismo e por um acordo que se dá entre as várias frações burguesas. Dai a grande importância de sua obra e de sua concepção de história, pois, o poeta não apenas se converte ao catolicismo, mas também a sua linguagem poética é convertida a ele. Portador de uma linguagem frequentemente solene ou como afirma José Guilherme Merquior “o que Murilo tem de sacro, tem de plástico”, [5] ou seja, ele renova sua poesia pela incorporação aberta ao moderno, sobre a vitória dos novos poemas, graças a audácia de suas imagens e o feitio irredutível de seu ritmo. Esse visionário se apresenta com uma luminosidade total.
Bumba-meu-boi, composto à maneira folclórica do bumba-meu-boi, é uma dramatização crítica da ordem social, em que a realidade brasileira é apresentada de forma alegórica:
A Família do Poeta
Salve, salve, seu poeta.
Você hoje anunciou
Que vai dar uma função
Na praia do Acaba-mundo.
Juntou-se a família toda
Para visitar você,
trouxemos alguns vizinhos
para engrossar a função.
O Poeta
Se sentem sem cerimônia.
Sejam benvindos, merci.
Os mais malucos na frente
– não têm medo de aplaudir
os ajuizados, no fundo.
O Professor
Seu moço me dê licença
de vir arejar um pouco:
Estou com a cabeça quente
De tantas aulas que dei.
O Poeta
Muito obrigado ao senhor,
não me ensinou coisa alguma.
Sendo assim caí no mundo,
aprendi foi por mim mesmo
sem o método Decrolly
Louvada seja a burrice,
não tentou meu professor
a me ensinar coisa errada
no deserto do colégio,
coisa alguma me ensinou.
A Primeira Namorada
Também eu vim te rever…
Você se lembra de mim?
………………………………..
Escrito nos anos de 1930-1931 e publicado na Revista Nova, de Paulo Prado, dois anos depois, integra a demolição modernista. Este auto de Natal popular nordestino, que pode ser representado em praça pública ou em residência particular, só surgiria em forma de livro em 1959, no volume Poesias, reunião da obra completa até então. Com exclusão de História do Brasil e inclusão de novos livros: Sonetos Brancos (1946-1948), Parábola (1946-1952) e Siciliana (1954-1955), resultante das viagens do poeta. [6] Sobre a obra muriliana, diz o poeta pernambucano João Cabral de Mello Neto (1920 -1999):
Sua poesia me foi sempre mestra, pela plasticidade e novidade de imagem. Sobre tudo foi ela quem me ensinou a dar precedência à imagem sobre a mensagem, ao público sobre o discursivo.
Em Murilo Mendes, vida e poesia caminham juntos, sempre na mesma direção, cada livro da longa obra do poeta juiz-forense em prosa e em versos, “escreve em ritmo marítimo, convulsivamente, em voragem, em vertigem, em voracidade, em veracidade, em estado de febre permanentemente, em estado de bagunça transcendente, em alucinação da cachola, sabendo que tudo é ritmo de cérebro do poeta”. Murilo é um poeta cósmico, cuja preocupação com o fazer poético levou-o a uma constante reflexão sobre a estética, a fome estética que o consumiu até o fim.
Tempo Espanhol (1950), somente publicado nove anos depois em Lisboa, reúne cerca de setenta poemas inspirados na Espanha: em seus poetas, seus santos, seus artistas e suas cidades, o próprio convívio diário, a convivência do cotidiano espanhol. É na realidade, sua solidariedade à Espanha problemática e antológica, onde o autor testemunha in loco, e vai mostrando em toda a extensão, um aspecto de sua história. Conforme observa Haroldo de Campos, é um livro domado e severo, de maturada maturidade. [7] Enquanto que Merquior em 1960 já falava seguramente da “Concisão, Arquitetura nítida maravilhosamente adequada ao retrato de uma terra onde a clareza da paisagem é um convite à lucidez. [8]
Em homenagem ao amigo Joan-Miro escreve:
Soltas a siglas, o pássaro, o losango.
Também sabes deixar em liberdade
O roxo, qualquer azul e o vermelho.
Todas as cores podem aproximar-se
Quando um menino as conduz no sol
E cria a fosforescência:
A ordem que se desintegra
Forma outra ordem ajuntada
Ao real – este obscuro mito.

A estrutura intelectual do poeta, na busca constante de uma forma, não o separa dos outros homens, isolando-o na sua cela de artesão ou nas diversas frentes da atividade e da sensibilidade humana. Encontramos um Murilo Mendes voltado para a experiência modernista, participante em cada instante da vida. O certo é que, quando aparecem os Poemas, o modernismo já tinha feito o seu tempo; uma nova e profunda insatisfação reina no espírito dos seus próprios criadores. O movimento ia perdendo cada vez mais os seus adeptos: Manuel Bandeira escreve “Vou-me embora pra Pasárgada” e Murilo converte-se com Jorge de Lima o catolicismo. “Poemas” é a espinha dorsal de toda a poesia muriliana; nasce numa atmosfera rarefeita e suspensa na busca de um Cristo moderno e humaníssimo, ou do equilíbrio por via transcendental. Esse discurso, que seria depois válido para toda a obra posterior – visto que todos os fermentos e estímulos que encontramos nas obras seguintes – já estão aqui em embrião.
Em Convergência (1970), o poeta desenha grafitos verbais e ainda pratica os exercícios vocabulares dos barrocos, com seus inúmeros neologismos, onde a radicalidade da invenção se faz presente e em cujos poemas se mostram em afinidade aos experimentos semânticos e fônicos os mais variados, além dos recursos a sinais gráficos das vanguardas poéticas, como a poesia concreta, e o próprio poeta se fez presente nas páginas da revista concretista, Invenção. Enfim, Murilo Mendes explora exaustivamente todas as possibilidades, montando e desmontando os jogos semânticos, traduzindo em palavras os novos tempos e integra-se às novas tendências da arte literária. Ou seja: “E resultado de um projeto e não de uma aderência”. Na realidade o poeta não aderiu a novidade, mas consumou um longo projeto: a evolução consciente de toda uma experiência de vida e criação. Vejamos o poema Murilograma a Cecília Meireles:
Dorme no saltério & na magnólia,
Dorme no cristal & em Cassiopéia.
Dorme em Cassiopéia & no saltério
Dorme no cristal & na magnólia.
O século é violento demais para teus dedos
Ducteis afeiçoados ao toque dos duendes:
O século, ácido demais para uma pastora
De nuvens aponta o revólver aos mansos
Inermes no guiar & columbrando a paz,
Armamentos em excesso, parquesombras de menos
Se antojam agora ao homem, antes criado
Para dança, alegria & ritmos de paz.
A faixa do céu Glauco indica-te serena,
Acolhe e ode trabalhada, nãogemente
que ainda quer manter linguagem paralém.
Altas nuvens sacodem as crinas espiando
Teu sono incoativo. A noite vai inoltrada,
Prepara úsnea de seda à ságoma da tua lira
Que subjaz no corpo interrompido, diamante
Ahimè! Mortal que os deuses reclamaram.
Dorme em Cassiopéia & no saltério,
Dorme no cristal & na magnólia.
Na Europa, onde vivia desde 1959, especialmente em Roma, onde havia fixado sua residência, e exercia seu labor de professor de literatura brasileira, além de divulgar nossa cultura. Murilo estabelece também um vínculo concreto com a cultura europeia, realiza inúmeras conferências em universidades e se tornava aos poucos cada vez mais presente. Conhece escritores e artistas como: André Breton, Guiseppe Ungaretti, Alberto Magnelli, Albert Camus, René Char, Ezra Pound, etc. e publica em jornais e revistas e tem várias de suas obras traduzidas para o francês, espanhol e italiano. É nesse universo plural que ele invade outras linguagens, ultrapassando a existência de um projeto poético estabelecido, e em 1971 recebe o Prêmio Internacional de Poesia Etna-Taormina.
Poliedro (prosa), publicado em 1972, um ano ante dos Retratos-Relâmpagos, seu último livro, é um descompromisso total com as formas até então vigente de sua poesia. Rico, novo, mostrando que o mundo do poeta está ainda em constante efervescência. Deprimido, dominado pela angústia, mas entregue ainda à invenção de sua poesia, na casa de seu sogro Jaime Cortesão, no bairro da Estrela em Lisboa, onde se encontrava de férias, morre Murilo Mendes subitamente de infarto, às 22 horas e 30 minutos, do dia 13 de agosto de 1975, aos setenta e quatro anos e três meses exatos.
Murilo deixou-nos uma obra ampla, indo da sátira aos temas religiosos (era profundamente católico), d irreverencia lírica ao tom apocalíptico e do desassossego surrealista ao verso tenso e rigoroso. Além de vários livros inéditos: Carta Geográfica; Espaço Espanhol; Janelas-Verdes; Retrato-relâmpagos (2ª série); A Invenção do finito; Conversa Portátil, Papiers (texto original em francês) e Ipotesi (texto original em italiano). Murilo Mendes é um poeta fascinante e estranho à primeira vista, pela liberdade criadora. Sua poesia da fase inicial, fortemente acentuada pela influência surrealista, manifesta-se de um modo livre, apropriado à sua própria norma poética. É sem dúvida um dos nossos poetas mais difíceis e irregulares, construindo em sua poesia um mundo vizinho do onírico, interpenetrante aos planos real e metafísico, consubstanciando a visão agônica de um mundo decadente, amargurado e sofrido, desunido pela guerra. Sua poética, altamente simbólica, revela mais do que um modernista, o criador de uma poesia magistral, espiritualizada, que tenta transmitir a eternidade da existência pós-morte.
Bibliografia
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo, Ed. Cultrix. 1980.
CÂNDIDO, Antônio. Presença da Literatura Brasileira – Modernismo. Rio de Janeiro, Difel. 1975.
MARTINS, Wilson. O Modernismo. São Paulo, Ed. Cultrix, 1973.
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira – Modernismo. São Paulo, Ed. Cultrix, 1989.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1969.
WELLEK, René. Conceitos de Crítica. São Paulo, Ed. Cultrix, 1980.
[1] Aspectos da Literatura Brasileira, Mário de Andrade. Rio, América-Edit, 1943.
[2] Crônica Literária, Pedro Calmon. Rio, A Ordem, 1930.
[3] A Poesia em Pânico, Mário de Andrade. In O Empalhador de Passarinho. São Paulo, Editora Martins, 1946.
[4] Murilo Mendes: um bom exemplo na história, Flora Sussekind. Rio, Revista Civilização Brasileira, nº7, janeiro de 1979.
[5] A Razão do Poema, José Guilherme Merquior. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1965.
[6] O livro História do Brasil, Murilo Mendes, teve uma 2ª edição pela Nova Fronteira, 1991.
[7] Murilo e o mundo substantivo, Haroldo de Campos. In Metalinguagem. Petrópolis, Ed. Vozes, 4ª edição, 1967. São Paulo Editora Perspectiva, col. Debates, nº 247, 1992.
[8] A Razão do Poema, José Guilherme Merquior. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1965.
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Jornalista, escritor, Doutor Honoris Causa concedido pela Universidade Federal de Sergipe – UFS. Membro do Grupo Plena/CNPq/UFS e do GPCIR/CNPq/UFS