A beleza às vezes está gripada

No momento você está vendo A beleza às vezes está gripada

Por Gerson Brasil

Senhorita May Milton, 1985, Henrique de Toulouse-Lautrec (1864–1901)

Bela. Julieta Borges e Assis y Mello rodou o olhar acompanhada de pele abundantemente clara, aquosa, na morosidade de quem sabe enfrentar espelho, piscar olho para a supercilia, ter de volta agradecimento, mover a cabeça levemente para trás, enquadrar simetria dos lábios em razão do queixo, a expansão da mandíbula na proporção certificada pelos ombros, na forma de triângulo equilátero, lados e ângulos congruentes; perscrutar posicionamento da medalha de Madalena, descansando logo após o pescoço oblongo, numa área de onde fora removido o efeito de uma ruga, lentíssima.

Sem muito esforço a paisagem sugeria moldura de um quadro; possivelmente não viria a ser pintado, medo das imperfeições puxava outros empecilhos, como a vontade de permanecer de pernas cruzadas e sequilhos à boca eram o suficiente para qualquer momento. Saia e blusa não disputavam o corpo e nem o cobriam de modo vigilante, como se intruso, desobediente, estivesse na proximidade de alcançar a mão, na tentativa de agradecimento fútil, conforme regras, salutar para a perpetuação das regras e obediente como todos os passos a levar a uma conferência de vãos aleatórios, mas confiantes, ou simplesmente atravessar rua, desviar da bicicleta e tolerar cachorro, coleira e a dona, todos emprestáveis, mas graciosamente adquiridos, numa liquidação.

Outubro é um mês aziago, mas não se pode condená-lo escutar todas as desgraças, até aquelas não portadas na fila e nem por isso desnudadas de direitos, sempre implacáveis, mas redentores de pouca cal. Não há como fazer uma apuração rigorosa, por melhor que seja o método escolhido, descartando-se o empregado por Miguel Lopez y Lopez na intenção de saber quem lhe roubou a mulher, em pleno festejar de 5 de julho, na quadra leste do bairro das Flores, na presença, atestada pelos jornais, de multidão enfurecida, à busca de destronar quem se opusesse ao campo de visão.
Lopez tentou uma vidente, conhecida por promover orações, destinos, bem acima da ciência, porém refutáveis, algumas vezes eram classificados como indolentes, mas sempre cativantes, por favorecer imaginação e o regozijo de batizar a todos com esperança tola e confiante. Não foi possível localizar a esposa. Sumiu, inacreditavelmente, mas sumiu e não cabe desconfiar de criaturas horrendas ou seres celestiais, hereges, desabonadores.

O vento estava bem posicionado, e julieta de batom pera já tinha descansado os olhos, cumpriu a obrigação de detalhar cores, cada entalhe, posição das janelas, porta, e voltou-se para algumas veias, bem acomodadas, mas visíveis, sem manchas, ou arranhões. Antes do ar ser sacudido, acolheu um pouco de respiração, e o intervalo de tempo alucinadamente foi arrebentado, com vigor e força surpreendente.

Kiss my ass.
Sincerely

A voz crua, mas sem irritação, vibrou na família de Alvarez Souto da Santa Cruz, sitiada a seis quadras da rua a abrigar Julieta e também família. Era quadrilátero cortado pela ferrovia Estoril, obstinada a produzir acidentes a rivalizar com números naturais. O terno de Souto suportou a infâmia, a causticidade não chegou à gravata, os sapatos permaneceram ordinários e a camisa manteve botões nos 55 centímetros disponíveis. A rua não se manifestou, parecia dormir vizinhança, era primavera, tempo bom para sonatas, em tardes silenciosas. Souto comentou o insulto. “Gracias a todas las cosas del mundo, podemos nos furtar de intempéries sem precisar recorrer a misericórdia, justiça ou mergulhar numa guerra, sem que narrativas e esclarecimentos sejam suficientes para barrar conflito, a atravessar o tempo impossível de ser comparado ao calendário gregoriano. Sólo se utiliza para marcar cumpleaños, bodas y encuentros casuales, cuyos ruidos y apareamientos se manifiestan en órbitas no calculadas”.

Moveu-se na poltrona, fingiu estalar os dedos, aprendeu a técnica com Alfredo Borges, quando este se dirigia a Marta Santarrita, a infernizar ambiente, com o colo na iminência de diabolizar olhos alheios, postos na ansiedade da expectativa do acontecimento. “Gostaria de não lhe aborrecer e sim torná-la mais bela do que o espelho pode garantir, sei, tratar-se de uma moeda difícil, por não dispor do emprego de totalidade suficiente, afinal, me sirvo de elogios, que podem guardar somente distrações, enquanto como bolo de chocolate e bebo chá, imperdíveis e por isso mesmo os retenho na memória, salvo os jantares e almoços no ‘Alforria’, Quasares’ e ‘Sempre Viva’. Se a memória não a traga suficientemente, também não se serve de admoestação. Não é incomum o desleixo ou a ira presentear-me em horas que se dizem canalhas, aborrecidas ou perdeu-se numa malha de gravatas que poderiam voltar às lojas; dispensaria o bilhete de despedida”.

A família de Julieta cerrou a boca, rubra, conseguiu manter silêncio, de outro modo o martelo seria estorvo e nem se poderia cogitar de serrote ou qualquer outra mecânica. Era desproposital aconselhamentos, salmos e outras invenções, dadas a se estabelecerem como fundamentais. Se são acolhidas, as ocasiões a ensejam, mas quando não há verdades, nem mentiras e sim escalonamentos, tornam-se intolerantes.

“Se bela existo para a multidão, quer por defeito, ‘bonita e infeliz’, quer pela falta de perspectiva, na apuração de conceber formas não surradas, longas e preciosamente cultivadas, devido a certeza de se saberem honradas, e empregadas com grandiloquência, ou no oportuno acidente de acuidade, notavelmente bem visto, por engendrar garantia, com a certeza de conter bom valor de uso, consequentemente troféu a rivalizar com título, no prestígio da academia. Mas pode também conter vício pernicioso. Ainda não foi dada a garantia – pressuponho uma falácia – de que a beleza cultivada pela multidão, na qual você está incluído e mesmo se por um esforço tenha se esquivado, ardilosamente, ou empregado subterfúgio, resulte no apreço de considerações a indicar caminhos.

Adoro simpatias, têm gosto de considerar totalidades adornativas, sem precisar fixar diagnóstico, localizar amadurecimento, consagrar um bem, na falsa perspectiva de conhecer algo, a dar vantagem sobre como se conduzir diante de objeto ou de alguém. Porém, algumas vezes recorremos a simpatias, porque la figure não se dá ao alcance, como se estivesse atrás de vidro borrado, ou simplesmente não anda de metrô, ônibus, moto e sim de motorista. A simpatia acolhe não a beleza, mas gestos bobos, como beber um chocolate numa cafeteria, fumar cigarro iniciando o prólogo de algo a ter prosseguimento para quem observa, mas censura, timidez, comedimento e medo o retém, num lugar protegido de ser violado, até mesmo por descuido. Se alguém me presenteia com a beleza ou ensaio de palavras possivelmente cúmplices, testemunhas de inócua veracidade, no cumprimento de ritual, regra, desavisadamente, perigosamente, na iminência de se tornar exagero, incômodo; não me atrevo ao comentário e nem confirmo a aceitação, por prudência. Afinal, como medir o salto da bailarina, se ela está gripada?
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Escritor, jornalista e historiador