A lagoa de turvo azul

  • Post category:ARTIGOS
No momento você está vendo A lagoa de turvo azul

Por Martha Guedes

Aonde vai a linda Rosibel em tristonho caminhar? Por fastio, talvez, do rigor da pragmática ou em busca, quem sabe, do que não sabe o quê? O vento outonal lhe toma os cabelos em sedosa espiral. Fria a noite, pálida a lua, caminha Rosibel em lento vagar.

Distantes já estão os muros do castelo. Rosibel suspira na solitude descampada e fria, onde o vento revolve folhas secas do chão. À beira de um charco, sobre uma pedra chora.

— Por que chora, gentil princesa?

— Não sei por quê – soluça a bela. Quem fala, se a ninguém vejo?

— Estou aqui, embaixo.

— Um sapo!

— Por que não? Que de mais há?

— De sapos e princesas, nem crianças querem mais ouvir contar.

— Ora, amor, tenho os meus encantos!

— Quais, pois não os vejo?

— Beije-me e os verá.

— Sapos eu beijei e muito desesperei.

— O que aconteceu?

— A eles ou a mim?

— A eles. Em príncipes viraram?

— Como sapos ficaram.

Mais intensa a lua brilha. Delicada figurinha de mui raro lavor se revela ao sapo e a outros muitos seres que povoam o charco. Cantam-lhe a beleza as pequenas lesmas. Secundam as rãs em poético coaxar. A triste figura de uma barata encarquilhada a todos observa, na ponta do  graveto que do lodo emerge.

Como um acalanto, os versos entoados trazem paz ao coração e a princesa, estendida sobre a relva, dormita. Cobre-lhe o manto que a miríade de aranhas gentis para ela teceu. Em sossego, profundamente dorme. Recolhido já está o sapo, sob as folhas de um cróton.

A luz dos pirilampos aos poucos se apaga. A lua se esconde. Um e outro tchibum agitam em ondas suaves a água escura e viscosa. “A lagoa dorme e tudo é silêncio…” — ecoa a canção do bardo que por ali constante passa.

É de manhã. No charco, a vida fervilha em chiados alegres, palrear de periquitos e mergulhos bolhosos. Meio desperta, sem que saiba ao certo onde está, vê-se a jovem logo servida por abelhas que trazem fino mel. De tudo o que julgam as formigas nutritivo e agradável ao paladar, às costas cada uma um pedacinho lhe traz. Comovida, Rosibel agradece. Minhocas bem não lhe sabem. Delicada, não as pode recusar.

O sapo também desperta. Por desjejum lhe apetece uma porção de moscas. A mirar-se no espelho d’água, a si mesmo lisonjeia: — Que lindo exemplar de Anura!

Desde quando no brejo foi parar? Há cinquenta anos, talvez? Não se lembra. Da música de acelerado ritmo, trechos retém na memória.

— Croac! — exclama satisfeito e mergulha. Mui presto vem à tona e logo ele a pedra alcança, onde Rosibel sentada está.

 Amorosos ais

Aos pés da princesa, depõe o sapo verde talo de alga. A moça o põe nos cabelos qual Vênus a surgir das águas, que ao brejo se transpõe, da moldura deslocada. Mais e mais, o sapo se aproxima. Rosibel se inclina. Um jovem a contempla e sorri.

Utilius tarde quam nunquam

De porte elegante, o príncipe é. Decerto a jaqueta de couro que veste, garboso uniforme de guerra há de ser. Gracioso atavio é o nome Lee. Que lindo cabelo, tão bem penteado, na testa elevado, a cintilar! Corrente de prata no peito reluz. Pulseira de couro e negras botinas… Plurais, os anéis.

Ao moço não comove o amoroso perscrutar. De atavios revestido, de piedade despido, dirige-se a Rosibel:

Recobro, amiga, a forma antiga. Ilusões não crie, baby, todavia. Me voy!

Como assim? Aqui hei de ficar sem príncipe, sem castelo, sem fada que me valha ou bruxa a temer?

Boneca, não me culpe. A turma me espera e rápido à Rua Augusta a cento e vinte eu vou.

— Ridículo anacronismo — observa, intrometida, a cobra-coral, de alheios colóquios inteirada.

Desolada a nobre Rosibel. No lodo jaz perdida a ilusão.

Nem tudo se desfaz no lodaçal, Rosibel — considera a barata, do alto do graveto.

Nem tudo. No lodo, inesperado sapo canta. De consolo e amor, baladas canta. Rosibel, enternecida, outra vez a sonhar.

Em terra de sapos, princesas a saltitar

Ronda constante, gentil amoroso.  Puro deleite. Dito chistoso, dança e romança. Luar. Coração palpita. Ao amigo, abre. Ouve. Chora. Consola. Boa e terna Rosibel!

Espelho, espelho meu

De verdes nuances, a pele; curtas, as mãos; rotundos, os dedos. Ampla a silhueta, top model Chanel, não mais. Feliz Rosibel ao espelho.

—Croac!

Verde. Não, auriverde. Pois, com mimos o sapo a corteja: pendentes, anéis, braceletes — ouropéis reluzentes —, in China certamente made.

Epílogo, enfim!

Branca e radiante vai a noiva. O coral das cigarras, esplêndido, taciturnos espíritos comove, como o da barata, que aqui nos deixa, decidida a mudar-se para a Terra do Nunca.

Por quê? — indago com surpresa o radical motivo.

Nada mais às crianças vou contar. No lodaçal profundo, meu baú de histórias fechado jaz. “I A” no lacre foi inscrito. Meninos, eu vi!

Possas tu, velha carocha, esta linda história um dia contar.
———————————————–
Colunista e viajante