Por Eliecim Fidelis
Talvez as referências evocadas por esse título já soem como clichê. Mesmo assim, quero insistir no assunto, e ficaria contente se esse texto fosse lido preferencialmente pelo leitor jovem, nascidos em finais dos anos setenta e inícios dos oitenta. Foi a posição defendida por um desses jovens, um ex-aluno, a quem muito agradeço, que me estimulou a escrevê-lo. Não via esse jovem há alguns anos, mas o carnaval nos traz boas oportunidades de rever velhos conhecidos.
Dois casais amigos conversávamos amenidades, quando meu ex-aluno chegou fantasiado e se juntou para a cervejinha gelada. Conversa vai, conversa vem, entre a passagem de um bloco e outro, foi inevitável a referência à importância da indicação ao Oscar do filme dirigido por Walter Salles. Em certo momento, a esposa do amigo disse:
— Nossa! como chorei assistindo ao filme; que judiação com uma família tão bonita!
Observei que o rapaz a olhou de forma diferente, mas a prosa continuou, e o esposo dela disse:
— Um absurdo. É uma covardia a maneira como os milicos invadiam a privacidade dos lares.
Os lábios do rapaz se encolheram. Sem ao menos perceber, a esposa do amigo completou:
— Ainda bem que não tivemos a volta recente da ditadura em nosso país.
Agora, além dos olhos, os lábios de meu ex-aluno arregaçaram-se. Mas tivemos que nos espalhar devido à passagem contagiante do Bloco das Muquiranas. A expectativa era de que a conversa se acalmasse, ou até tivesse fim, depois de curtirmos a animação dos foliões, e de bisbilhotarmos suas criativas fantasias, em comemoração aos sessenta anos de irreverência. Mas assim que a poeira passou, o rapaz voltou e bradou:
— Nós estamos na ditadura! E o Alexandre de Moraes é o ditador! Espalha mil fake news dizendo que é para combater as fake news, e manda prender até jornalistas americanos.
Seguiu-se um silencio, daqueles que poderiam ser eternos, se eu não tivesse observado que a mensagem parecia dirigir-se a mim. Ossos do ofício.
Como não houve meio de me lembrar seu nome, e o silêncio da banda La Fúria já se esvaía, olhei-o passivamente, e disse:
— Você, tão jovem, na certa não viveu o tempo da ditadura militar de 1964 no Brasil. Se tivesse atravessado aquele período, talvez pensasse diferente. Já ouviu falar no AI-5? No SNI? Você sabe que, além de Ainda Estou Aqui, há outros filmes e dezenas de livros que tratam do assunto? Leu algum deles? Sabe que apenas o livro Brasil Nunca Mais reuniu mais de setecentos casos de relatos de repressão e tortura?
Agora quem cortou de vez a conversa, afinal ninguém é de ferro, foi a passagem da Ivete.
Observei que o rapaz acenava negativamente após cada uma das perguntas, mas, no final, a única resposta foi: “É tudo fake!”.
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Psicanalista e escritor. Membro do Espaço Moebius Psicanálise. fidelis.eli@gmail.com