ÂNGELA CUNHA UMA TRAJETÓRIA DE ARTE

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Por Reynivaldo Brito

Conheci a Ângela Cunha na década de 70 recém-chegada dos Estados Unidos quando veio morar em Salvador atraída pela efervescência cultural que vivia a Bahia  na década de 70, e que teve repercussões em todo o país e até no exterior. Ela é natural de Londrina, no Paraná,  e quando tinha por volta de dezessete anos resolveu   estudar nos Estados Unidos, mas seus pais não tinham condições financeiras de bancar seus estudos fora do país. Foi ai que seu pai soube que  a Associação Cultural Brasil-Estados Unidos – ACBEU iria realizar  uma seleção para levar alguns estudantes brasileiros para a América através do American Field Service, uma instituição de intercâmbio cultural. Participou da seleção e ficou em segundo lugar, mas como a vencedora tinha idade superior à permitida na seleção ela foi chamada, e assim pode estudar e se aperfeiçoar na Tenafly High School quando foi estudar inglês, espanhol e artes, dentre outras disciplinas. Esta escola fica localizada no condado de Bergen, no estado de Nova Jersey, perto de New York. “Aí me apaixonei pela arte, e tive a felicidade de fazer amizade com minha colega Sherryl Belinsky que era uma artista que fazia belos desenhos em bico de pena. Conservamos esta amizade até hoje, e tem uns anos que ela passou quinze dias aqui comigo. Foi uma maravilha”, relembra com alegria

Gravura em três tonalidades , de 1977.

Para sobreviver foi ensinar inglês que aprendera fluentemente durante sua permanência nos Estados Unidos. Foi então que procurou a jornalista Regina Coeli, de saudosa lembrança, que dirigia a escola de inglês Yes, que funcionava na Ladeira da Barra. Dedicou-se também neste período à pintura, mais especificamente a técnica de nanquim sobre papel em grande formato. Atualmente continua pintando em nanquim. Ela tem uma necessidade intrínseca de se expressar em grandes formatos, o que contrasta com seu jeito aparentemente calmo de ser. Seu relacionamento foi se expandindo conhecendo outras pessoas em Salvador e terminou sendo convidada para ensinar inglês na Associação Cultural Brasil-Estados Unidos, ACBEU, por James Mc Gillivery, que era o secretário executivo da instituição. Passou a ganhar mais e assim a vida foi melhorando e pode fazer seu curso de graduação sem maiores dificuldades. Ela vinha de outra região do país, com cultura e modos diferentes, embora já estivesse com a cabeça mais aberta devido ao período que passou nos Estados Unidos. Mas, mesmo assim estranhou um pouco aquele ambiente da EBA que na época enfrentava muitas greves, tinha uma grande militância política e também o modo descontraído de viver dos colegas.

                                                             QUEM É 

A artista Ângela Cunha é natural de Londrina, no Paraná, onde nasceu em vinte e seis de agosto de 1954 filha de Maria José Assis Fonseca Cunha e Mário Cunha, que era correspondente do jornal a Folha de São Paulo para o norte do Paraná e sua atividade principal era a Filatelia, que é o estudo e pesquisa dos selos empregados nas postagens dos mais diversos países. Ela lembra que na época ele mantinha correspondência por cartas com colecionadores de muitos países, inclusive da China, de onde recebia os novos selos que iam circular em todo o mundo. É bom ressaltar que não havia internet e nem celular. Tudo era feito através de cartas, que demoravam muito a chegar de um destino tão longínquo como a China. Ele criou o Clube de Filatelista de Londrina e escrevia semanalmente um artigo no jornal a Folha de Londrina contando as últimas novidades da filatelia.

Era uma família de classe média e Ângela Cunha tem um casal de irmãos. Estudou o primário na Escola Maria Aparecida, que era de freiras, e fez o ginásio num estabelecimento público chamado Ginásio Pio XII, e  não esqueceu que o uniforme tinha as cores verde e marrom. Quanto ao colegial foi também num colégio público o Colégio Professor Vicente Rijo. Disse que “naquela época as escolas e colégios públicos de Londrina eram muito bons”. Quando terminou o colegial que encasquetou de estudar fora seu pai sempre preocupado com a harmonia e segurança da família reagiu com muita cautela e até espanto. Conta que ele disse que não tinha condições de mandar estudar fora. “Até descobrir a seleção que estava sendo feita pela American Field Service – AFS,  na Associação Cultural Brasil-Estados Unidos, em Londrina, no Paraná.”

Outra boa lembrança é que seu pai gostava de ler e sempre lhe apresentava novos livros para que lesse e isto contribuiu para que ela tivesse uma boa colocação na seleção do intercâmbio cultural, e durante toda sua vida. Falava com grande prazer e alegria desta oportunidade impar de estudar nos Estados Unidos. Já tinha concluído o curso colegial aqui e foi novamente fazer na High School Thenafly onde passou a ter contatos com novas disciplinas inclusive com as artes. Recordou que ao retornar estava com a cabeça mudada com as informações que recebera e o modo de vida do povo americano. Nos seis meses  que ficou em Londrina ao retornar ensinando inglês foi preparando silenciosamente seu novo salto que seria sua vinda para a Bahia. Depois que estava tudo pronto revelou a seu pai. “Ele quase tem um enfarte e me perguntou como você vai sobreviver na Bahia minha filha? Eu não tenho condições de lhe manter lá.” Respondeu que ia ser professora de inglês já que fala fluentemente a língua inglesa. Seu pai teve que acompanhá-la ao cartório e na entrada parou e colocou a mão na testa, disse Ângela Cunha. “Uma cena que não esqueço, ele estava muito preocupado.”

Obra em nanquim sobre
papel .Hoje ela está pintando
em cores mais escuras.

Veio para a Bahia onde está até hoje ao lado de seus dois filhos que teve com grande fotógrafo Mário Cravo Neto, o Mariozinho. São eles o Akira Cravo, que segue a profissão do pai, e o Lukas Cravo também fotografo e impressor de FineArt, que é o  único Canson Certified Printer na Bahia. Segundo a Wikipédia “a fotografia fine art é a fotografia criada de acordo com a visão do artista fotógrafo, que utiliza o meio para expressar algo que apenas vive em sua mente.” Portanto, Lukas Cravo faz a impressão das fotografias e também de pinturas e gravuras de clientes com alta resolução e tem valor de mercado por ser exclusiva.

Obra de 2000 já na cor escura.

Confessa que o casamento e a convivência com Mariozinho  foi um aprendizado muito importante porque “ele era muito competente e profissional. Quase todo o ano viajava para o exterior  onde ele fazia suas exposições em Nova Iorque, Berlim, Amsterdã, Paris, Copenhague e outras cidades europeias. Quando nos separamos foi um choque para mim, porque a separação é traumática, é como uma morte.” E confessa rindo: “foi ele que separou de mim. Viver artista com artista não é fácil. Mas, continuamos grandes amigos e na época ele vinha ver os filhos com certa frequência. Confesso que quando ele morreu eu senti muito, mas quando da separação senti muito mais”.

                                                     FORMAÇÃO

A artista Ângela Cunha quando chegou decidiu fazer vestibular para a Escola de Belas Artes, da Universidade Federal da Bahia. Disse que ficou muito ansiosa e preocupada com o vestibular e em , especial com a prova de Desenho que tinha como examinador  Juarez Paraíso. Não era boa em desenhar figura humana e treinei muito e na hora da prova fiz bem meu desenho e passei. As outras provas foram tranquilas. Depois de alguns meses na escola como não conseguiu fazer joalheria pensou em desistir e voltar para casa. Durante as férias foi para Londrina  e falou com seu pai que não ia continuar o curso na EBA e ele não gostou. “O quê? Você é macaco para pular de galho em galho”? “Ai ele comprou uma passagem de volta para Salvador e me despachou”, conta rindo. 

Voltei e fui estudar até concluir o curso de Belas Artes. Durante o curso tive uma professora Zélia Maria e um dia ela escolheu uma gravura grande de 1,5 metro por 1 metro e exibiu na sala de aula para os meus colegas e disse e segurando a gravura : “Nasce uma gravadora!” “Fiquei muito feliz e passei a fazer muitas gravuras. O professor Juarez Paraíso me emprestava uma prensa que ele tinha em seu ateliê no bairro de Itapuã. Eu ia aos domingos e ficava lá sozinha com o vigia e fazia muitas impressões. Vendi muita gravura e isto ajudava a minha sobrevivência que já estava bem mais tranquila porque recebia um bom salário pelas aulas de inglês na ACBEU. Na época a EBA não deixava os alunos usarem a prensa fora da hora da aula. Foi quando participei de muitos salões e exposições. Até 1980 quando parei de fazer gravura e passei a pintar em 1984”, conta Ângela Cunha.

                                                                     EXPOSIÇÕES 

Ela disse que sua primeira exposição individual foi na Galeria da ACBEU, que promovia muitas exposições de qualidade. A segunda foi no Museu de Arte de Londrina. Quando morava com Mário Cravo Neto, o Mariozinho, um dia ele foi ler o currículo dela e notou que tinha umas vinte exposições coletivas e participação em salões. Foi quando resolveu eliminar e assim só ficaram registradas estas aqui relacionadas. Exposições Individuais: 2009- Exposição  Os Mágicos Olhos da América, no Museu Afro Brasil, em São Paulo, quando ela apresentou o trabalho Quando último Rio Secar. Foram quatro mil bolinhas argila numa caixa de madeira, denunciando o que estão fazendo com nossos rios. Lembra que telefonou para Emanoel Araújo que era diretor do Museu e ele disse: “Você tem uma semana para enviar a sua obra.” Imagine que tive que embalar quatro mil bolinhas de argila, um pouco maiores que uma bola de golfe, conseguir a grana e enviar. Foi um trabalhão, mas consegui e exibe o livro onde aparece sua obra com um texto que  Mariozinho tinha feito pouco antes de falecer. 2002 – Exposição na Bahia Design Center, Salvador, Bahia; 2000- Museu de Arte Moderna da Bahia, Salvador; 1994 – Exposição na Galeria Atrium, Salvador; 1990 – Galeria Artenata, Salvador; 1987 – Galeria Arte Viva, Salvador; 1978 – Museu de Arte de Londrina; 1978 – Exposição de gravuras na Galeria ACBEU, em Salvador. Exposições Coletivas: 1998 – Exposição Tropicália 30 Anos, no Museu de Arte Moderna da Bahia; 1998 –

Exposição Coleção de Arte Contemporânea, no Museu de Arte Moderna da Bahia; 1998 – Exposição no Museu de Arte Moderna, do Rio de Janeiro; 1997 – Workshop, Artistas Brasileiros e Alemães, Museu de Arte Moderna da Bahia, Salvador; 1996 – III Salão MAM-Bahia, no Museu de Arte Moderna da Bahia; 1994 – I Salão MAM -Bahia, no Museu de Arte Moderna da Bahia; 1988 – Exposição Artistas Baianos, no Museu de Arte Moderna da Bahia; 1987 – Exposição Escotilhas para o Aberto, no Museu de Arte Moderna da Bahia; 1980- Exposição Jovens Artistas, no Museu de Arte Moderna da Bahia; 1979 – Exposição 13 Artistas, na Galeria Baguettes, em Salvador; 1978 – I Salão Universitário de Artes Plásticas, no foyer do Teatro Castro Alves, em Salvador.

                                                    REFERÊNCIAS

Vou relembrar aqui o texto de Mário Cravo Neto fez pouco tempo antes de sua morte falando da obra de Ângela Cunha “Quando o Último Rio Secar”, que tem uma história. Com a vinda de sua amiga Sherryl Belinsky a Ângela Cunha foi andar por várias vezes num pedacinho de Mata Atlântica que existe em Patamares e que está ameaçado de destruição. As pessoas que andam por lá o chamam de Vale Encantado, e sempre iam em comapnhia do arista Ramiro Bernabó, que é filho de Carybé e mora nas redondezas, e outras pessoas. Eles lutaram para a preservação deste local e ai veio a preocupação com a Ecologia e a ideia de fazer a obra. Veja o  que escreveu o Mariozinho: “As esferas moldadas de barro simbolizam as mãos que se elevam,que cobrem o rosto, são o pranto de lágrimas do leito seco do rio. O barro amassado e cozido é a síntese de um momento poético – e o rio  seca, o corpo oferece a água – com o passar do tempo tudo volta à sua normalidade. Enquanto passamos por esta terra nos confrontamos com pequenas ilhas de emoção, não necessitamos de ir muito longe à procura da verdade. Sempre nos esquecemos de que há muitos lugares dentro de nós mesmos e que pouca importância damos a eles, na sua maioria até os desconhecemos. No universo das possibilidades não convém ao artista limitações de uma geografia descritiva, ele deve descobrir a sua própria através da ação, do movimento que é vida, que está contida na auto suficiência do seu ato e do seu ser. 

Regamos a terra com as lágrimas do sofrimento, ao mesmo tempo sentimos o prazer de vivenciar o que por nós foi construído, posteriormente devemos deixá-los de lado e dar mais um passo. Assim sempre foi, assim sempre será, assim como os dedos que amassam a terra e moldam a natureza à sua imagem, assim também tateamos no escuro em busca de um caminho desconhecido. Os ninhos de barro de Ângela, também são construídos por certos pássaros e outras espécies  – todos eles servem para abrigar , para dar proteção a si mesmo ou aos outros”. Mário Cravo Neto.

Já Wilson Rocha no seu livro Artes Plásticas em Questão  escreveu:”A magnitude de desejo inconsciente é que, a nosso entender, mobiliza a ação do artista. Quando isso ocorre, a arte cobra vigor e energia e capta os vestígios do mundo e os fragmentos de vida. Assim são os profundos enígmas das vigorosas reflexões estéticas de Ângela Cunha. A visibilidade de seu universo plástico exige este modo de conceber o processo criativo nessas dimensões fantásticas. A visão e as metas de sua realização artística são suplamente proveitosas. de um lado, a figuração voltada para a evolução e decomposição da forma, de outro, há algo mais profundo através da dimensão oculta e original do ser, que produz atuações distintas, de inconsciente a inconsciente, para significar o fenômeno da essência e da aparência, a gêneses do signo com sua assemântica não-convencional,como verdadeira emergência estética”. ……

Noutro trecho ele escreveu: Ângela Cunha é uma artista lúcida e profundamente informada, certamente a personalidade de artista mais monoestilística de nosso ambiente, a artista que encontrou mais cedo a sua fonte e o seu caminho criativo. Com uma obra reveladora e estimulante, ela é ainda impressionante pela sua admirável relação técnica com o espaço”.

      Ângela Cunha com o crítico Wilson Rocha

     NANQUIM

A artista Ângela Cunha atendendo uma recomendação de Mário Cravo Neto com quem conviveu por dezessete anos passou a usar a tinta nanquim para pintar em grandes formatos e expressar suas emoções. Antes o nanquim só tinha na cor preta, mas atualmente existe em várias cores. Mesmo assim ela prefere o preto e a sépia para a sua criação artística e pintar sobre o papel Canson de 1,5m por 1 m. 

Segundo a Wikipédia “o nanquim é originário da China e é também chamado de tinta da China  preparado com negro de fumo coloidal , também conhecido por pó de sapato e empregado em desenhos aquarelas e na escrita. Foi desenvolvida pelos chineses há mais de dois mil anos, a tinta é constituída por nanopartículas de carvão suspensas em uma solução aquosa. Como nanopartículas dissolvidas em líquido se agreguem e formam micro e macropartículas que sedimentam no fundo do recipiente, os chineses antigos descobriram como estabilizar a solução ao acrescentar goma arábica (uma espécie de cola). A tinta nanquim é muito parecida com a tinta sumi, de origem japonesa para a arte sumi e que tem, como composição, fuligem, goma arábica, água e especiarias.”