Por Reynivaldo Brito

imagem de um santo .
Estou diante de uma artista com oitenta e dois anos de idade que transparece uma vitalidade impressionante. Ela faz a integração da cerâmica,vidro e a pintura. Para isto Dulce Cardoso vaza a cerâmica para encaixar a peça de vidro numa combinação perfeita. Mantém em sua residência o atelier com oficinas e espaço cultural onde tem mostra permanente de seus trabalhos na Rua Agnelo Brito, no bairro da Federação, em Salvador. Ela fala fluentemente e rapidamente de suas atividades na arte da cerâmica e vive sempre procurando soluções e outras formas de realizar a sua obra. Foi logo me dizendo que “o tamanho do forno não deve ser o limite para o ceramista”. Isto mostra que Dulce Cardoso gosta de desafios, e se o forno é pequeno para a obra que imaginou ou pretende um colecionador, arquiteto, decorador ela vai encontrar a solução. É uma das mais requisitadas ceramistas por arquitetos como o David Bastos, Celeste Leão, André Sá e Milena Sá e também decoradores para complementarem com suas obras em cerâmica ou vidro conjugados os seus projetos para edifícios e residências.
Mostrou que é capaz de fazer peças de mais de dois metros graças a soluções que encontrou, como por exemplo, fazer por etapas, e através de encaixes justos montar a peça. Quando indaguei sobre se esses encaixes não poderiam desequilibrar a peça ela simplesmente respondeu que não acontece porque constrói uma base adequada à peça e os encaixes têm que ser muito precisos, não deixando folgas.
Como escreveu seu amigo Aldo Tripodi “ao longo dos anos alia o domínio técnico com a invenção artística e cria uma poética particular”. Já vi muitas peças feitas por ceramistas famosos e não vi entre as dezenas de peças nas prateleiras e mesas do seu atelier, e nem mesmo nas fotos que manuseei, algo que parecesse com alguma cerâmica conhecida. Tudo tem a marca desta mulher magra, de aparência frágil, mas na verdade é uma artista forte e vibrante que manuseia a argila desde 1984. Além de ceramista ainda mantém um gosto requintado pela culinária, e que divide com sua clientela através do sistema delivery do Temperos do Atelier. Entre seus pratos apreciados está a maniçoba que já foi alvo até de um texto de Helô Sampaio no seu livro de receitas. Fiquei sabendo também que alguns jornalistas e amigos, inclusive o saudoso Silva Filho, juntamente com Helô gostavam de apreciar in loco sua maniçoba e outros pratos.

Atualmente vem criando peças originais unindo o vidro à cerâmica num trabalho minucioso e cuidadoso por serem materiais que tem a queima em temperaturas diferentes e requerem tratamentos diferenciados. Mas, essas características mexem com a vontade hercúlea desta mulher em criar e enfrentar novos desafios. Dulce Cardoso mostra que adora desafios e sua cabeça não para de imaginar coisas e soluções para esta arte milenar, que existe desde as primeiras civilizações habitaram este Planeta. Primeiro fabricaram os objetos utilitários como panelas e potes. No Brasil lembramos de pronto da cerâmica marajoara produzida por povos indígenas que habitavam a Ilha de Marajó, no Pará, entre os anos 400 e 1400 d.C. Na Bahia de Maragogipinho, onde anualmente é montada uma feira e os oleiros expõem os objetos que fabricam de barro. Eles têm uma forma peculiar de ornamentar as suas peças com arabescos que vêm de muitas gerações, usando a tabatinga, tinta tradicional obtida através de utilização de pigmentos retirados da terra. A palavra Tauá é de origem indígena e significa “barro vermelho” em tupi Aqui na Bahia, em Maragojipinho, esta tradição está sendo ameaçada com a utilização de tintas industriais principalmente de PVC. Ela lamenta e recomenda que os artesãos de Maragogipinho e outros lugares “continuem a utilizar as tintas tradicionais, ficam bem mais autênticas as peças, também devem evitar copiar peças de fora”. É uma profissional ágil, mas exigente com o resultado de sua produção e uma defensora da cerâmica tradicional. “Nós ceramistas que trabalhamos com a cerâmica artística usamos as tintas minerais para colorir nossas peças.”

Ela disse que peixes são fáceis de estilizar.
QUEM É
A Maria Dulce Cardoso Cardoso é natural de Conceição de Feira, onde nasceu em dez de maio de 1942. Filha do fazendeiro Epaminondas Mascarenhas Cardoso e Avany Barreiros Cardoso. Seu pai foi um dos pioneiros na criação do polo de avicultura no município e também contribuiu para o fortalecimento da bacia leiteira com a introdução de matrizes de alta performance. Portanto, sua infância “foi maravilhosa fazendo pequenas cacimbas, brincando com os bezerros, cozinhando e outras brincadeiras comuns entre as crianças do interior deste país”. Disse que tem quatro irmãos e que sempre iam para a feira local, e no açougue, seu pai tinha uma banca de comercializar carnes, pegavam um pedaço de carne e iam fazer suas paneladas. Lembra que achava o máximo sair com a carne nas mãos presa por uma pindoba. Para quem não é do interior a pindoba é uma palha do ouricurizeiro, palmeira nativa do sertão. Logo que ela lembrou da carne presa numa pindoba me veio à mente rins de ovinos que eram também presos numa pindoba que eu e meus amigos na juventude compravámos para fazer tira-gosto nas nossas farras. Estudou no Grupo Escolar Hermilo Cardozo e banca à tarde com a professora Zelita. Veio fazer o Admissão no Colégio Nossa Senhora das Mercês, localizado na Avenida Sete de Setembro, em Salvador, e ocorreu um episódio que lhe marcou. Fez uma prova de Matemática, com prova oral e escrita, e por poucos décimos a professora lhe reprovou. Seu pai ficou chateado e tirou das Mercês, e a matriculou no Colégio Dois de Julho, no bairro Fazenda Garcia. Ela tinha pouco mais de treze anos de idade, e disse que esta troca de colégios resultou numa completa mudança de ambiente e metodologia. Aí terminou o ginásio e em seguida foi fazer o Curso Pedagógico no Colégio Nossa Senhora da Salete, no bairro dos Barris. Chegou a ensinar no Curso primário numa escola municipal, mas finalmente optou por ir trabalhar com seu esposo Aroldo Cardoso na empresa de refrigeração que criou especializada em projetos e montagens de câmaras frigoríficas, e atualamente é uma empresa patrimonial. Ela passou a trabalhar na parte administrativa. Seu objetivo era fazer Arquitetura e sua mãe a incentivava, mas não levou a ideia adiante. Foi quando teve o primeiro contato com a cerâmica através um curso com o grande ceramista ucraniano Udo Knoff,

Scaldaferri para a Secretaria da Indústria.
Foto 2. Painel do Centro de Convenções .
Sabemos que o Centro desabou, e não se
sabe do destino do painel de 32 m2.
na Escola de Belas Artes que ainda funcionava na Rua 28 de Setembro, no Centro Histórico. Levou pouco tempo no curso. “Conheci um pouco, mas não firmei nada”. Certo dia minha avó foi fazer uma exposição de flores naturais através o Instituto Mauá e precisava de uns jarros de barro para colocar suas flores. Então em fui à Feira de São Joaquim e lá por acaso me encontrei com o mestre Vitorino, que é um dos pioneiros da cerâmica de Maragogipinho, e tinha uma barraca de vender produtos de cerâmica. Eu já o conhecia porque ele trabalhou aqui em casa levantando uma parede revestida de cerâmica de Maragojipinho. Foi quando me convidou para comparecer a um curso de torno que ia fazer no Museu de Arte Moderna, nas Oficinas do MAM, que na época eram dirigidas por Juarez Paraíso. Foi ao curso e conseguiu fazer uma peça no torno, centralizando bem o barro. Muitos alunos colocaram as peças no torno e ao girar caiam longe. Na sua ida ao MAM ficou também sabendo que a professora Bethânia Vargas, já falecida, ia dar um curso de cerâmica. Ela se inscreveu e participou do curso. Lá conheceu alguns artistas como Reinaldo Eckenberger e Ramiro Bernabó . Fez umas máscaras para serem expostas juntamente com outras peças dos alunos do curso. Lembra que roubaram uma das máscaras e que nunca mais encontrou. Ela disse que pintou as máscaras com uns pigmentos minerais e quando foram pro forno a tinta soltou toda. Fui pesquisar e fiquei sabendo que antes tinha de agregar os corantes à argila líquida que chamam de barbotina. Então elapreparou e deu tudo certo.
Durante algum tempo um jovem chamado de Josemar, que é de Maragogipinho, trabalhou com Dulce Cardoso em seu atelier e aprendeu a fazer vários trabalhos diferenciados. “Incentivei ele a usar as tintas tradicionais dos oleiros de lá para manter a autenticidade como o engobe.” Os engobes cerâmicos são obtidos pelas misturas de argilas, feitos de pigmentos inorgânicos e podem ser fornecidos em pó ou empastados à base de água e outros aditivos que são aplicados à superfície de peças cerâmicas antes ou depois da primeira queima de 600 a 700 graus, que são consideradas queimas baixas. Eles têm uma função estética e funcional dando um conforto de cor e textura, além de melhorar a aderência e impermeabilização. Já existem engobes para baixa e alta temperaturas.
Para as pessoas que não conhecem a cerâmica de Maragogipinho, vale a pena visitar. É um distrito da cidade baiana de Aratuípe, fica no Baixo Sul, da Bahia. Dista 227 Km de Salvador e tem uma tradicional produção ceramista. São quase uma centena de olarias que vem passando de geração à geração há cerca de trezentos anos. Podemos ver as cerâmicas de lá em três categorias: religiosas que apresentam objetos sacros como santos da igreja católica e as quartinhas, talhas e porrões do candomblé; as decorativas como o boi-bilha, baianas, porco-cofre, vasos e luminárias; as utilitárias: porta-incenso, gameleiras, travessas, panelas, moringas, potes, entre outras.

prontas e outras para finalizar.
Voltando a Dulce Cardoso na sua busca sempre por aprender foi participar de um curso com o professor Jorge Fernandez Chiti ,em Buenos Aires e lá recebeu uma apostilha e conseguiu traduzir do espanhol para o português com a ajuda de um dicionário . Confessou que os ensinamentos do mestre argentino são úteis até hoje no seu trabalho de ceramista. Ele tem vários livros publicados e disponíveis na Amazon. Esteve no Congresso organizado pela Revista Mãos na Massa, do Pascoal Gerdulo, que é o maior fornecedor de argila para ceramistas de todo o país. E de lá foi para o interior de São Paulo para ver o trabalho do artista uruguaio Angel Roberto Bonino (1932-2008), que tinha um atelier onde trabalhava com vidro ,era um famoso mestre vidraceiro. Fizeram amizade , ela e o esposo Aroldo Cardoso com o Bonino, que lhes passou as informações necessárias para a construção de um forno próprio para o vidro. Hoje ela está integrando o vidro com a sua cerâmica e resulta em peças muito personalizadas, estilosas e criativas. O seu esposo a princípio relutou em construir o forno para vidro, porque sua especialidade é projetos de câmaras frigoríficas e argumentou “que os princípios são bem diferentes”. Mas, construiu primeiro um forno a gás e depois o de vidro. Dulce vem trabalhando cada a vez com mais habilidade nesta integração do vidro com a cerâmica.
REFERÊNCIAS

Aldo Tripodi – Uma Poética do Barro – A obra de Dulce Cardoso considerada em sua totalidade, reflete uma coerência estilística, e isto é fruto de sua constante investigação, persistência e talento artístico, Constrói sua criação com o barro, que é um elemento de alta plasticidade, mas que requer, esta mesma matéria, acurado conhecimento técnico para alcançar o resultado desejado. Não se furtando a este desafio, Dulce Cardoso, explora todas as possibilidades que o barro oferece. Ao longo dos anos, alia o domínio técnico com a invenção artística e cria uma poética particular. Inventa e reinventa. Um simples objeto utilitário: um prato, um vaso, torna-se, à parte de sua função prática,um objeto merecedor de uma apreciação artística: também se dedica a escultura, bem como aos painéis, pastilhas e objetos. Para um juízo crítico pouco importa a função do objeto, contanto que este objeto atenda aos critérios que se deseja para uma análise estética, Poucos artistas conseguem aliar praticidade do objeto criado com a possibilidade de uma apreciação, isto requer do seu inventor um vasto conhecimento da técnica por ele eleita e uma refinada sensibilidade. Neste caso Dulce atende a estes pré-requisitos, esta é a razão porque sua obra justifica para ela a afirmação de ser esta artista uma das maiores representantes da arte cerâmica, em Salvador.”
Ailton Lima – Popular Erudito na Arte de Dulce Cardoso – “O talento criador de Dulce a impulsiona para investigar valores mutantes, extrapolando ○ convencional. Mescla a pureza do barro com um vigoroso universo cromático, se apoiando nos segredos do secular artesanato cerâmico do nosso Recôncavo, fazendo-o erudito. Dulce marca sua forte presença em qualquer participação coletiva, nos mostrado o brilhantismo no diálogo entre ○ comum e o inovador. É uma artista simples, porém muito segura do seu potencial expressivo, despojada e eloquente no vasto panorama das artes plásticas”.
EXPOSIÇÕES

INDIVIDUAIS – 2005 – Sanlazzaro Espaço Arte- Salvador-Ba; 2004 – Espaço Cultural do Atelier – Salvador-Ba; 2003 – Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM – Salvador-Ba; 2002 – Museu Eugenio Teixeira Leal- Salvador -Ba; 1998 – Museu BANEB de Azulejaria Udo Knoff. Salvador BA; 1995 – Quereres Café e Arte – Salvador-BA.
SALÕES -Em 1999 – Selecionada para o XXVI Salão Regional de Artes Plástica da Bahia. Vitória da Conquista -BA; XXIII Salão Regional de Artes Plástica da Bahia. Feira de Santana-BA;1996 – II Salão de Artes Plásticas do MAM-BA. Museu de Arte Moderna da Bahia; 1995 – I Salão de Artes Plásticas do MAM-BA, Museu de Arte Moderna. BA.
PAINÉIS -Em 2005 – Tribuna da Bahia. Salvador BA; 1999 – Centro de Convenções da Bahia. Salvador BA; 1998 – Secretaria da Indústria e Comércio da Bahia. (em Parceria com o artista plástico Sante Scaldaferri). Salvador BA; 1997 – Hotel Portal de Lençóis. Lençóis-BA; 1996 – Mar Hotel Rio Vermelho, Salvador-BA e na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia Salvador Ba.
COLETIVAS – 2005 – Transformação, na Galeria EBEC Salvador-BA; Acervo Espaço Cultural do Atelier. Salvador-BA; 2004 – Terra Cotas da Terra, Conjunto Cultural da Caixa Salvador-BA; 2003 – Nós Mulheres, Galeria EBEC. Salvador-BA; 2001 – Diálogos. Espaço Cultural do Atelier. Salvador BA; Centro de Memória e Cultura dos Correios; Salvador BA; 2000 – Memorial dos
Governadores. Fundação Pedro Calmon, Salvador-BA; Câmara Municipal de Salvador, Índio. Terra. Barro, Exposição Comemorativa aos 500 Anos de Brasil e 450 Anos da Cidade de Salvador, Salvador-BA; 1999 – Museu de Arte Sacra, Resto da Tradição. Salvador-BA; 1998 – Galeria Caminho das Artes, Salvador- BA; Shopping Barra, Praça Euvaldo Luz, Salvador-BA; Espaço Cultural da Casa do Comércio, Salvador-BA ; Livraria Grandes Autores, Salvador-BA; 1997 – Associação Comercial da Bahia, O Recôncavo, Salvador-BA ; Galeria do Cafelier, Salvador- BA; Shopping Barra, A arte no Barra, Salvador-BA; 1994– Galeria Bauhaus, Goiânia-GO; 1992 – Sebrae, Hors Lá, Salvador-BA ; Associação Brasileira de Cerâmica, Espaço Cultural da Estação do Metrô São Bento, Mostra de Arte Cerâmica Contemporânea, São Paulo – SP; 1991– SESI- Serviço Social da Indústria, Shopping Barra -Salvador-BA; Associação Baiana de Arte Cerâmica, Casa do Comércio, Salvador-BA ; Espaço Moviarte – São Conrado Fashion Mall, Rio de Janeiro – RJ; Pintura a Fogo Sobre Terracota, Exposição a Quatro Mãos, Sorensen e Dulce Cardoso no Museu de Arte Moderna, Salvador- BA ; SESC – Serviço Social do Comércio, Shopping Barra, Salvador-BA; 1990 – Espaço Cultural Forte de Santa Maria, SESI – Serviço Social do Comércio Salvador-BA; Espaço Cultural Forte de Santa Maria. Salvador-BA; SESC- Serviço Social do Comércio, Shopping Piedade, Salvador-BA; 1989 – Galeria do SESC- 1ª Mostra de Cerâmica Artística da Bahia- Salvador-BA; 1988 – Galeria do SESC, Salvador-BA; Biblioteca Central do Governo do Estado da Bahia, Salvador-BA; 1986 – Shopping Center Iguatemi -Alunos das Oficinas do MAM-BA.

Painel abstrato na entrada da casa.
Foto 3- Painel no Atelier.
Foto 4. Dulce falando de sua trajetória.
Já coordenou vários seminários, cursos e palestras e posso destacar o I Seminário de Design Cerâmico que reuniu os professores Norma Grimberg, de São Paulo, Pascoal Gerdulo, também de São Paulo e grande fornecedor de argila para ceramistas de todo o país; Jorge Fernandez Chiti, da Fundação Condorhuasi, Argentina, que falou sobre Profundizacion Cerámica dentre outros. Este curso foi realizado no Museu de Arte Moderna da Bahia com o patrocínio da Universidade do Estado da Bahia – Uneb e Ucsal. Também em 1990 coordenou o curso de Painéis e Murais, ministrado por David Ruight, e o de Formas, Modelagem e Barbotina, ministrado pelo Prof. Josias Paulo dos Santos / UFBA ; Em 1991 dos cursos Esmaltes para Alta Temperatura e outro sobre Construção de Fornos, ambos ministrados pelo professor e engenheiro inglês Jeremy Fiennes.