Foi um velhinha que aqui passou

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Port Martha Guedes

– Lá vai a velhinha coroca!

– Oh, coitadinha! Não diga isso!

Olhei para um lado e para o outro, não vi velhinha coroca nenhuma. Eu era a única pessoa no campo de visão das meninas, que conversavam e riam na área coberta ao lado do meu prédio.

Era eu, sem dúvida, o objeto do comentário maldoso. Como uma sentença atroz, recebida de chofre e sem qualquer possibilidade de apelação, aceitei o veredicto, embora não me convencesse do epíteto “coroca”.

Entrei em casa, curvada sob o fardo da realidade. O espelho, indiferente à minha dor, confirmou cada ruga, cada mancha que eu me recusei, até então, a enxergar. Velhinha e, ainda por cima, coroca!

Desfilaram na mente todas as velhinhas corocas conhecidas com os respectivos instrumentos maléficos _ maçã, fuso, varinha, isqueiro, pente… De qual deles me serviria? Se optasse por lançar raios, talvez não acertasse traseiro nenhum.

Velhinha, com certeza. Desde menina. Sempre achavam que a minha idade era maior que a informada. Não me agradava vestir roupas de cores alegres. Aos treze ou catorze, ao contrário das amigas que deixavam à mostra braços e colo em leves vestidinhos de alças, eu os cobria em  mangas compridas e golas espessas.

Coroca, tenho de admitir. Vivo à parte do mundo ruidoso e bestialmente feérico, assim considerado por um espírito mais propenso à contemplação _ em sonho, pelo menos _ da montanha escarpada que da praia iluminada. Tenho desenvolvido tal aversão ao contato social, que me vejo como uma espécie de Mr. Augustus Minns, personagem de um dos contos de Charles Dickens, outro tanto como o Dom Casmurro do nosso Machado de Assis.

Aos setenta, decorridos dez anos da repentina tomada de consciência da senectude, busco alongar o tempo em sentido inverso ao movimento progressivo que lhe é próprio. Puxo-o para trás. Assim, na contabilidade de horas, dias e anos, aumento o meu tempo de vida. A elasticidade desse retrospecto me leva inevitavelmente à pequenina e bela Ruy Barbosa, onde nasci e cresci, antes de me deixar levar pelo movimento espiralado do tempo, que diluiu em nuvem de indefinição e inexpressividade o que antes era perceptível como simples, pleno e bom.

Será preciso tomar um ônibus, comer o requeijão do Bravo e descer afinal na diminuta estação rodoviária, implantada na colina próxima do mercado municipal ou em frente da padaria de Seu Aurino, da pensão de Seu Artur, onde esteve o ponto de ônibus em dias mais longínquos? Sim. Mas, este trajeto de férias do colégio é feito neste quarto sem horizonte. Chego à minha casa. Não há muro alto que a separe da rua e a porta lateral está aberta. Papai e Mamãe, a postos, esperam que eu me desvencilhe da bagagem e dos odores do ônibus superlotado para tomar café, com pão quentinho da padaria do Folga, beiju e bolacha-papuda comprados na feira.

Como, converso, escovo os dentes e vou dormir na velha cama-patente, sobre o lençol cheiroso e engomado, depois de me ver no espelho. Não há rugas nem cabelos brancos.

O dia amanhece luminoso e fresco. Passo pela casa da vizinha, muito o que conversar com Quita. Depois, a perambular pelas ruas calçadas com paralelepípedos bem talhados e brilhantes, o encontro com a turma, as fofocas, a agenda das festas do clube, a música do alto-falante do cinema. Na esquina da praça principal, no Senadinho, Padre João responde alegre ao cumprimento. O sinuoso contorno da serra, ora verde ora de profundo azul, apela ao abraço. E me deixo abraçar pela mais bela e suave montanha do mundo.

Tempo que se encomprida para trás e torna em presente o passado. Vou dormir. O corpo me dói e a vista se esvaece na página aberta do Word. Espero que o sono retome o presente. Porque, neste exato momento em que mazelas de uma velhinha coroca flagelam o corpo e o espírito, estou no passado.

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Viajante solitária. e escritora