Por Joaci Góes
(À médica e amiga Aline Ponte!)
Como dissemos no artigo anterior, decidimos atender pedidos dos leitores para abordar a conexão que grandes pensadores, de diferentes épocas, estabelecem entre propostas ideológicas igualitárias, que proscrevem o mérito, tendo a inveja como sua motivação, começando por Emanuel Kant, cujo pensamento a respeito arremataremos nas linhas abaixo. Essa é a razão pela qual não abordaremos, hoje, como gostaríamos de fazê-lo, a exitosa avant-première do longa-metragem sobre Rui Barbosa, no Cine Glauber Rocha, na última segunda-feira, projeto que nasceu da feliz iniciativa da ABI.
Para Kant, a gratidão é um dever moral irresgatável dos recipiendários porque, não importa quão generosamente tenham eles devolvido o benefício recebido; ao doador caberá, sempre, o mérito do pioneirismo da iniciativa. Por essa razão, a gratidão igualitária, a única que permite ao beneficiário colocar-se em posição de igualdade em relação ao seu benfeitor, só é possível em relação aos maiores, como pais e avós, porque a precedência da iniciativa do benfeitor, neste caso, em razão de um imperativo cronológico, não lhe confere a superioridade conatural às demais situações. A percepção prévia da irresgatabilidade do débito e da superioridade inelutável do benfeitor gera, no favorecido, o desejo, consciente ou não, de libertar-se do encargo oneroso da gratidão. Daí advém o famoso aforismo de Joseph Fouché, o mais notório camaleão na luta pelo poder, ao tempo da Revolução Francesa: “O ingrato sente necessidade de destruir o seu benfeitor para, desse modo, extinguir o ônus da gratidão”!
Kant desenha o cenário dentro do qual a gratidão deve operar: “O limite inferior consiste em prestar ao benfeitor serviços iguais aos recebidos, se ele ainda estiver em posição de recebê-los (se estiver vivo, por exemplo). Caso contrário, deve prestá-los a terceiros; nunca se deve encarar um benefício recebido como se fosse um fardo do qual se deseja descartar (como está um degrau abaixo do doador, o recipiendário sente-se ferido em seu amor-próprio), mas como uma benção moral propiciadora de oportunidade ímpar para exaltar a gratidão como uma das maiores virtudes do amor, representativa, a um só tempo, da sinceridade do espírito benevolente e da ternura da benevolência, (Kant chama à atenção a sutileza desta distinção para o conceito de dever), cultivando, deste modo, o amor humano”. Comentando o pensamento kantiano, Helmut Schoeck , um dos maiores tratadistas modernos sobre a inveja, aduz: “Os benefícios recebidos, em face da ingratidão hostil, aumentam, ainda mais, a paixão e o princípio da ingratidão porque o doador passa a ser visto como maior, melhor e mais inalcançável, ainda, do que antes, aos olhos do ingrato. A maioria das observações feitas entre 1955 e 1965, em países que receberam ajuda de nações mais ricas, provaram, à larga, as conclusões de Kant. Este macro exemplo de ajuda internacional é sintomaticamente esclarecedor, porque, ao tempo da Guerra Fria, só nações soberanas, contrariamente aos beneficiários privados, poderiam exibir imediata e ostensiva ingratidão, em proporções correspondentes aos benefícios recebidos”.
Ao enfatizar o valor moral e o significado da gratidão para a vida, Kant teve o propósito de contrapor-se à leniência e permissividade com que a sociedade do seu tempo tratava a ingratidão.
Na próxima semana, falaremos a respeito do que pensou Arthur Schopenhauer sobre a inveja, a velha cróia da alma humana.