Por Wadih Habib
Title: Juristocracy: A Constitutional Critique of Brazilian Judicial Protagonism
Resumo
A proposta do presente artigo é investigar o fenômeno da juristocracia sob uma abordagem técnico-jurídica isenta de vieses ideológicos. O objetivo é contribuir para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito no Brasil. A partir de uma perspectiva crítica e propositiva, busca-se explorar a centralidade assumida pelo Supremo Tribunal Federal em detrimento do espaço deliberativo representativo, examinando os impactos institucionais, democráticos e jurídicos dessa reconfiguração do poder. Ao final, propõe-se uma reconstrução dos limites da jurisdição constitucional, à luz da soberania popular e da teoria da separação dos poderes.
Palavras-chave: juristocracia; STF; soberania popular; democracia deliberativa; decisões monocráticas; autocontenção judicial.
Abstract
This article proposes to investigate the phenomenon of juristocracy through a technical-legal approach free from ideological bias. Its objective is to contribute to the strengthening of the Democratic Rule of Law in Brazil. From a critical and constructive perspective, it seeks to explore the central role assumed by the Federal Supreme Court to the detriment of representative deliberative space, examining the institutional, democratic, and legal impacts of this power reconfiguration. Finally, it proposes a reconstruction of the limits of constitutional jurisdiction, in light of popular sovereignty and the theory of separation of powers.
Keywords: juristocracy; Supreme Court; popular sovereignty; deliberative democracy; monocratic decisions; judicial self-restraint.
1 – Introdução e Delimitação do Problema
Inicialmente, vale destacar que a consolidação de um Estado Democrático de Direito requer mais do que a existência de normas e instituições formalmente estabelecidas: exige vigilância contínua sobre a forma como o poder é exercido, distribuído e legitimado. A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 1º, parágrafo único, consagra o princípio fundante da soberania popular, ao estabelecer que: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Essa cláusula não é apenas declaratória; ela estrutura o edifício democrático, servindo de arcabouço normativo para a análise crítica do presente estudo.
No atual cenário político-jurídico, observa-se uma reconfiguração do local decisório inerentes às questões públicas de grande impacto. A arena representativa — espaço tradicional da deliberação popular — tem cedido lugar a decisões judiciais, proferidas tanto por órgãos colegiados quanto, com frequência crescente, por ministros individuais do Supremo Tribunal Federal (STF). Esse fenômeno, descrito por Ran Hirschl como juristocracia, caracteriza-se pela transferência da soberania normativa para instituições não eleitas, dotadas de racionalidade técnico-jurídica e autonomia institucional, porém destituídas de vínculo direto com o mandato popular.
Segundo Hirschl (2004), “a ascensão da juristocracia não é produto espontâneo, mas sim fruto de arranjos estratégicos de elites políticas, jurídicas e acadêmicas, que buscam preservar valores institucionais por meio da transferência de poder para tribunais constitucionalmente blindados” (HIRSCHL, 2004, p. 15).
Este artigo não pretende incorrer em juízos valorativos simplistas, tampouco aderir a polarizações ideológicas estéreis. O que se propõe é uma contribuição técnico-jurídica fundamentada, crítica e comprometida com os valores constitucionais, apta a refletir sobre os contornos e implicações do protagonismo judicial nas democracias constitucionais, com ênfase no caso brasileiro.
Esse protagonismo se expressa de forma aguda quando decisões monocráticas suspendem a eficácia de normas regularmente editadas pelo Poder Legislativo, subvertendo, ainda que temporariamente, a lógica da representação democrática.
Portanto, a investigação aqui empreendida parte da hipótese de que a juristocracia é expressão de um déficit democrático institucional, não apenas resultante da hipertrofia judicial, mas também da fragilidade deliberativa dos demais Poderes. O Judiciário, nesse contexto, atua não só por vocação, mas por delegação tácita dos espaços políticos ausentes.
Assim, a questão a ser examinada não se restringe ao “excesso” de atuação judicial, mas às condições sistêmicas que transformam o STF em protagonista normativo quase exclusivo em matérias de elevada densidade constitucional e impacto político.
A metodologia adotada será qualitativa, combinando análise dogmática, teórica e empírica, com base em jurisprudência selecionada e em aportes da teoria constitucional contemporânea, filosofia política e sociologia das instituições. Autores como Norberto Bobbio, Robert Alexy, Luigi Ferrajoli, Lênio Streck, Jürgen Habermas e Ran Hirschl fornecerão os fundamentos conceituais, sem prejuízo da incorporação de doutrina crítica brasileira contemporânea.
A pesquisa será desenvolvida em seis pilares. O Pilar 1 introduz e delimita o problema. O Pilar 2 apresentará os fundamentos teóricos e modelos internacionais da juristocracia. O Pilar 3 analisará sua manifestação no Brasil, com foco nas competências e práticas do STF. O Pilar 4 examinará as implicações democráticas do fenômeno. O Pilar 5 proporá diretrizes para a reconstrução dos limites da jurisdição constitucional. Por fim, o Pilar 6 reunirá as considerações finais e as referências técnicas.
2 – A Gênese da Juristocracia: Fundamentos Teóricos e Modelos Internacionais
A juristocracia, na condição de conceito e fenômeno institucional, não é exclusividade do cenário jurídico brasileiro, tão pouco uma anomalia isolada. Na verdade, trata-se de um desdobramento complexo das democracias constitucionais contemporâneas, nas quais o poder jurisdicional se afirma como protagonista na produção normativa, especialmente quando os canais representativos se mostram disfuncionais ou omissos.
2.1 – Juristocracia como conceito: o legado de Hirschl
O termo “juristocracia” foi cunhado por Ran Hirschl em sua obra Towards Juristocracy: The Origins and Consequences of the New Constitutionalism (2004). Nele, o autor sustenta que a ascensão do poder judicial a uma posição normativa central é produto de uma estratégia consciente de elites políticas e intelectuais, que, diante da instabilidade das instituições representativas, transferem competências decisórias fundamentais para tribunais constitucionalmente blindados e não sujeitos ao sufrágio popular.
Segundo Hirschl, esse processo ocorre sob o manto da neutralidade técnica e da proteção dos direitos fundamentais, mas muitas vezes resulta em uma despolitização da esfera pública, com deslocamento da soberania popular para a racionalidade argumentativa dos juízes constitucionais. Confira-se a ideia central do autor em tradução livre:
A judicialização estratégica de questões constitucionais tem menos a ver com o avanço da justiça do que com o redesenho do poder político e com a proteção de interesses hegemônicos. Ou seja, a constitucionalização de direitos e o estabelecimento da revisão judicial são, principalmente, o resultado de uma interação entre elites políticas ameaçadas, atores econômicos e líderes judiciais, todos buscando preservar sua influência e isolar a formulação de políticas das incertezas da política democrática. (HIRSCHL, 2004, p. 15).
Essa crítica não descarta o papel legítimo dos tribunais como instâncias de controle e proteção das minorias, mas alerta para os riscos da concentração tecnocrática do poder, em especial quando dissociada dos mecanismos de accountability democrática, que nada mais é senão a obrigação dos governantes e agentes públicos em prestar contas de suas ações à sociedade, como forma de garantir a transparência e legitimidade.
2.2 – Constitucionalismo e a centralidade do Judiciário
A crescente centralidade do Judiciário nas democracias constitucionais encontra respaldo doutrinário em teorias como as de Ronald Dworkin e Robert Alexy. Para Dworkin o juiz deve decidir de acordo com os princípios que fornecem a melhor justificativa moral para a estrutura legal como um todo (DWORKIN, Tradução de José Roberto de Castro Neves. 2012. p. 314). Já Alexy defende que “Princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes.” (ALEXY, 2008, p. 91).
Contudo, autores como Norberto Bobbio oferecem um contraponto necessário. Em O futuro da democracia, (BOBBIO, 2000, p. 30) adverte que o império da lei só se sustenta quando a lei é legitimada por um processo representativo legítimo. A substituição sistemática da política pela jurisdição, portanto, pode esvaziar o conteúdo democrático da legalidade, tornando a decisão judicial formalmente correta, porém democraticamente deficitária.
2.3 – Modelos internacionais: entre contenção e ativismo
A experiência internacional revela diferentes arranjos institucionais quanto à posição dos tribunais constitucionais.
Na Alemanha, o Bundesverfassungsgericht atua com elevada autoridade, mas adota práticas regimentais de autocontenção e fundamentação colegiada rigorosa. O respeito ao precedente, a limitação do uso de medidas cautelares e a exigência de deliberação coletiva asseguram um equilíbrio institucional robusto.
Nos Estados Unidos, a Suprema Corte exerce papel central na configuração constitucional, mas é fortemente influenciada por freios institucionais, como o controle do Congresso, a publicidade das audiências e a pressão da opinião pública. Casos paradigmáticos, como Brown v. Board of Education (1954), demonstram o potencial progressista da Corte, mas também revelam a complexidade da legitimação judicial em sociedades pluralistas.
Na Índia, a Suprema Corte protagonizou um dos modelos mais ousados de juristocracia estrutural, ao estabelecer a “doutrina da estrutura básica da Constituição”, por meio da qual invalidou emendas constitucionais consideradas incompatíveis com os fundamentos republicanos. Essa doutrina, embora admirada por sua coragem institucional, foi criticada por romper com o princípio da soberania popular (HIRSCHL, 2004, p. 130).
Esses modelos evidenciam que a juristocracia não decorre apenas da expansão judicial, mas do desequilíbrio entre os Poderes, especialmente quando o Legislativo se omite e o Executivo se enfraquece. Em contextos assimétricos, o Judiciário tende a ocupar o vácuo institucional, mas o faz sem os mecanismos democráticos tradicionais — o que impõe riscos relevantes à legitimidade e à responsabilidade institucional.
2.4 – O paradoxo da tutela contramajoritária
A defesa mais comum do protagonismo judicial é ancorada na ideia da função contramajoritária dos tribunais: a proteção dos direitos fundamentais das minorias contra abusos das maiorias transitórias. Esse argumento é particularmente relevante em regimes instáveis, marcados por crises políticas ou retrocessos institucionais.
Jürgen Habermas, em sua obra “Direito e Democracia: entre facticidade e validade”, adverte para os riscos inerentes à crescente judicialização da política. Ele argumenta que, embora a intervenção judicial possa ser intencionada como uma salvaguarda dos princípios democráticos e dos direitos fundamentais, uma transferência excessiva de decisões políticas para a esfera dos tribunais pode gerar um efeito paradoxal. Tal processo arrisca minar a vitalidade da democracia deliberativa, ao restringir o espaço para o dissenso político construtivo e a formação autônoma da vontade popular, podendo favorecer a consolidação de um consenso mais tecnocrático e afastando, assim, os cidadãos do núcleo do exercício da soberania. (HABERMAS, 1997)[1]
Em suma, a juristocracia não é uma deformação ocasional do constitucionalismo contemporâneo. É, antes, o sintoma de uma tensão estrutural entre a legitimidade democrática e a racionalidade jurídica, cuja resolução exige não apenas crítica, mas reconstrução institucional criteriosa.
3 – A Juristocracia no Brasil: STF, Ativismo e Hiperconcentração Institucional
A Constituição Federal de 1988 atribuiu ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma arquitetura institucional multifacetada, conferindo-lhe competências que ultrapassam o controle de constitucionalidade e o colocam no epicentro da governança normativa do país. A conjugação de atribuições originárias, ações de controle concentrado, repercussão geral e decisões com efeitos erga omnes, somadas à possibilidade de decisões monocráticas, contribuiu para consolidar o fenômeno da juristocracia em moldes brasileiros.
3.1 – O modelo constitucional brasileiro e a hipertrofia funcional
O desenho funcional do STF é singular. Conforme assinala Gilmar Mendes, trata-se de um tribunal “híbrido”, que exerce simultaneamente funções de Corte Constitucional, Corte Suprema e, em certos casos, Tribunal de Garantias (MENDES et al., 2015, p. 883). Essa sobreposição de papéis é acentuada pela abertura procedimental de ações diretas (como a ADI, ADPF e ADC), que permite a ampliação do controle normativo com base em critérios políticos e temáticos amplos.
Exemplos ilustrativos incluem o julgamento da ADI 5595, sobre fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa, e da ADPF 709, que determinou ações específicas para conter a pandemia entre populações indígenas. Em ambos os casos, o STF atuou de forma assertiva diante de omissões estatais, mas também avançou sobre o campo discricionário de políticas públicas.
3.2 – Jurisdição individual: o problema das decisões monocráticas
Um dos aspectos mais controvertidos da atuação do STF está na prevalência de decisões monocráticas com efeitos amplos. Embora previstas no Regimento Interno e justificadas por razões de urgência, tais decisões têm sido utilizadas de forma reiterada em matérias estruturantes e de elevada complexidade.
Exemplos paradigmáticos incluem a liminar proferida pelo Ministro Ricardo Lewandowski na ADI 7331, que suspendeu trechos do art. 17 da Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016), permitindo nomeação de agentes políticos em estatais.
Também merece menção a atuação do Ministro Luiz Fux, que em janeiro de 2020, atuando durante o recesso judicial, suspendeu liminarmente, por tempo indeterminado, a eficácia de dispositivos do Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019) que instituíam o “juiz das garantias”. Essa decisão foi posteriormente referendada pelo Plenário.
Outro caso emblemático foi a suspensão da nomeação do Diretor-Geral da Polícia Federal, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 760 (inicialmente como Mandado de Segurança 37.057, depois convertido). Em abril de 2020, o Ministro Alexandre de Moraes suspendeu liminarmente os efeitos do decreto do Presidente da República que nomeava Alexandre Ramagem para o cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal.
Esses exemplos expõem uma distorção funcional: ministros do STF, atuando individualmente, interferem de maneira decisiva em processos normativos legítimos, desafiando a colegialidade e os mecanismos republicanos de contenção recíproca entre os Poderes.
Como adverte Lênio Streck:
A monocracia decisória revela um déficit republicano: transfere-se a soberania do coletivo para a individualidade togada (STRECK, 2022, p. 203).
3.3 – O STF como metalegislador: ativismo judicial e omissão legislativa
Parte do protagonismo judicial decorre da inércia do Congresso Nacional em legislar sobre temas sensíveis, a exemplo, o STF, por unanimidade, julgou procedente a ADPF 132 (convertida em ADI) e a ADI 4277 para dar interpretação conforme a Constituição ao artigo 1.723 do Código Civil, reconhecendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, com os mesmos direitos e deveres aplicáveis às uniões estáveis heteroafetivas. Essa decisão teve efeito vinculante, ou seja, passou a orientar todas as demais instâncias do Judiciário e a administração pública.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em conjunto com o Mandado de Injunção (MI) 4733, teve como ponto central de discussão a omissão do Congresso Nacional em legislar sobre a criminalização de atos de homofobia e transfobia.
Um tema relevante que está em discussão no STF se refere a descriminalização do porte de drogas (RE 635659). Até o momento, ainda não foi proferida uma decisão final, no entanto, já existe uma maioria de votos formada no sentido de descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal. É crucial destacar que a discussão e a provável decisão se restringem, por enquanto, apenas à maconha, não se estendendo automaticamente a outras drogas. A maioria dos ministros que já votaram se manifestou pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) no que se refere especificamente ao porte de maconha para consumo próprio.
Embora essas decisões tenham respaldo jurídico e estejam em consonância com parâmetros internacionais de direitos humanos, sua recorrência como substitutiva da deliberação legislativa gera desequilíbrio institucional. A jurisdição constitucional torna-se, nesse cenário, instância normativa primária — um metalegislador que atua em nome da moral constitucional, mas sem o mesmo grau de legitimidade democrática.
3.4 – O paradoxo do poder sem representação
É necessário reconhecer que o STF não é um órgão de representação política direta. Seus ministros são indicados pelo Presidente da República, com aprovação do Senado, e possuem mandato vitalício até os 75 anos. Contudo, suas decisões — especialmente as estruturantes — moldam a vida institucional do país com impacto equivalente ou superior ao de leis formalmente editadas pelo Parlamento.
Esse paradoxo se agrava quando decisões individuais, proferidas em caráter cautelar, suspensivo ou simbólico, substituem a pluralidade do debate público por uma racionalidade técnica restrita. Ainda que juridicamente fundamentadas, tais decisões padecem de um déficit de legitimação política, o que compromete sua aderência social e mina a confiança no sistema democrático.
Como ressalta José Afonso da Silva (2014, p. 123), a Constituição não elimina o processo político, mas promove sua coexistência crítica e harmoniosa com o processo jurídico, assegurando o equilíbrio entre ambos no Estado democrático de direito.
Em síntese, o caso brasileiro evidencia um modelo de juristocracia hiperconcentrada, caracterizada por decisões judiciais unilaterais, ativismo institucional e fragilidade dos mecanismos tradicionais de representação. A continuidade desse arranjo impõe riscos não apenas à legitimidade do STF, mas à própria perenidade do Estado Democrático de Direito.
4 – Implicações Democráticas: Déficit Deliberativo, Despolitização e Tecnocracia Judicial
O alargamento do papel do Poder Judiciário na definição de políticas públicas e na normatização de temas centrais da vida social brasileira tem provocado efeitos estruturais sobre a cultura democrática. A juristocracia, nesse contexto, deve ser compreendida não apenas como um fenômeno de expansão institucional, mas como um processo de reconfiguração do espaço político, que contribui para a despolitização da esfera pública, a tecnocratização das decisões e a erosão da soberania popular.
4.1 – O déficit deliberativo como sintoma da crise democrática
Democracia não se resume ao voto periódico. Conforme ensinamentos de Jürgen Habermas (1997), uma democracia robusta exige um espaço público de deliberação permanente, plural e racionalmente orientado, no qual as decisões políticas são construídas a partir do confronto legítimo de visões de mundo distintas.
Quando decisões centrais passam a ser tomadas por órgãos judiciais — muitas vezes por ministros individuais e sem retorno ao debate legislativo — observa-se uma compressão do ciclo deliberativo. O Parlamento, locus institucional da soberania popular, é alijado do processo decisório, enquanto o povo, formalmente titular do poder, torna-se espectador da implementação de políticas públicas por via jurisdicional.
Essa supressão da deliberação pública compromete o princípio democrático de autogoverno e favorece o surgimento de uma democracia de baixa intensidade, na qual a legalidade se dissocia da legitimidade representativa.
4.2 – A tecnocracia judicial e o apagamento do dissenso
O modelo tecnocrático de decisão judicial se caracteriza por uma linguagem de autoridade, com ênfase na coerência argumentativa, na abstração principiológica e na rigidez hermenêutica. Embora importante para a estabilidade normativa, esse modelo, quando aplicado a temas de alta complexidade moral, cultural e política, pode provocar o silenciamento do dissenso social legítimo.
A judicialização da política não apenas desloca o espaço do conflito para uma arena menos acessível ao cidadão comum, mas também reconfigura o próprio sentido do debate: o que antes era uma escolha política passa a ser um problema jurídico, decidido por especialistas em nome da Constituição.
Como alerta Chantal Mouffe (2005), uma democracia sem antagonismo é uma democracia sem política — ou, pior, é uma tecnocracia camuflada de legalidade.
4.3 – A erosão da soberania popular
O artigo 1º, § único, da Constituição brasileira afirma com clareza que todo poder emana do povo. Trata-se de um princípio fundamental, que confere legitimidade a todas as funções estatais, inclusive à jurisdição.
Entretanto, quando decisões judiciais estruturantes são tomadas sem mediação representativa e sem participação popular efetiva, há um esvaziamento prático da soberania popular. O Judiciário, embora indispensável à preservação dos direitos fundamentais, não pode substituir, de forma sistemática, o processo político — sob pena de transformar a exceção em regra e a república em tecnocracia.
Habermas (1997) descreve esse processo como uma colonização sistêmica da esfera pública, na qual sistemas administrativos e jurídicos invadem o espaço de formação da vontade democrática, substituindo o discurso pluralista pelo imperativo funcional.
4.4 – O risco da naturalização da exceção
A repetição de decisões judiciais que suspendem leis, bloqueiam projetos legislativos ou determinam políticas públicas em substituição aos demais Poderes tende a normalizar aquilo que deveria ser excepcional. O uso reiterado de medidas liminares contribui para um estado de permanente excepcionalidade institucional.
Essa “judicialização da emergência” compromete a previsibilidade normativa, fragiliza o princípio da separação dos Poderes e reforça a percepção de que apenas o STF é capaz de resolver os impasses republicanos — visão perigosa e autorreferente, que despreza o papel estrutural do Legislativo e do Executivo no funcionamento da democracia.
A naturalização da exceção, além de minar a confiança social nas instituições, inverte a lógica do constitucionalismo: ao invés de limitar o poder, o Direito passa a ser instrumento de sua concentração.
5 – Reconstruindo os Limites da Jurisdição: Proposta Crítica e Recomendações Institucionais
Diante do avanço da juristocracia no Brasil, urge a formulação de diretrizes capazes de reequilibrar o sistema constitucional, reforçando os mecanismos de freios e contrapesos e devolvendo ao espaço político sua centralidade democrática. A crítica formulada até aqui não nega o papel essencial do Supremo Tribunal Federal na defesa dos direitos fundamentais, mas propõe a redelimitação de sua atuação institucional, com vistas a fortalecer sua legitimidade e preservar a vitalidade do Estado Democrático de Direito.
5.1 – A autocontenção judicial como virtude republicana
A doutrina da judicial self-restraint (autocontenção judicial) é consolidada em sistemas constitucionais maduros como instrumento de limitação voluntária do poder judicial. Trata-se de uma postura de deferência prudente aos Poderes representativos, especialmente em matérias politicamente sensíveis ou carentes de consenso constitucional claro.
No contexto brasileiro, a autocontenção pode se expressar por meio de:
- Redução do uso de decisões monocráticas com efeitos estruturantes, como aquelas que suspendem normas legislativas ou interferem na tramitação de projetos de lei;
- Valorização do colegiado, com preferência pela deliberação coletiva em matérias de impacto institucional;
- Fortalecimento de mecanismos participativos, como audiências públicas vinculantes em casos de elevada complexidade social, para ampliar a legitimidade procedimental das decisões.
Ao atuar com prudência e em sintonia com o princípio democrático, o STF reforça sua autoridade e evita o desgaste decorrente de decisões unilaterais e potencialmente descoladas do sentimento constitucional da cidadania.
5.2 – Revalorização da deliberação política
É imperioso que o Poder Legislativo recupere sua centralidade no processo de produção normativa. A passividade ou omissão parlamentar não pode continuar a justificar a hipertrofia jurisdicional.
Essa revalorização exige:
- Atuação mais ativa e propositiva do Congresso Nacional, inclusive com reações institucionais a decisões judiciais que extrapolem os limites da jurisdição;
- Revisão da cultura de delegação tácita ao Judiciário, em especial nos temas morais e estruturantes;
- Estímulo à qualificação do debate parlamentar, com investimentos em assessorias técnicas e participação social nos processos legislativos.
A democracia representativa não pode ser tratada como uma instância obsoleta ou incapaz. Pelo contrário, ela deve ser fortalecida como arena legítima de formulação das políticas públicas.
5.3 – Reformas institucionais e correção procedimental
Além de posturas institucionais, é possível — e desejável — implementar reformas normativas que promovam maior equilíbrio entre os Poderes. Algumas propostas incluem:
- Revisão do Regimento Interno do STF, para restringir as hipóteses de decisões monocráticas com eficácia geral ou impacto estrutural, exigindo apreciação colegiada obrigatória nesses casos;
- Estabelecimento de revisão periódica das medidas cautelares com efeitos sobre leis ou políticas públicas, com previsão de prazos máximos para sua apreciação colegiada;
- Criação de instâncias de controle interno de decisões monocráticas, com possibilidade de revisão automática pelo colegiado, especialmente quando houver interferência em prerrogativas legislativas ou administrativas.
Tais reformas não comprometem a independência do Judiciário, mas aperfeiçoam seu funcionamento, reforçando a legitimidade democrática de suas decisões e preservando o pacto constitucional de separação e harmonia entre os Poderes.
5.4 – Considerações finais da proposta
A reconstrução dos limites da jurisdição constitucional brasileira não implica retrocesso institucional. Pelo contrário, trata-se de um movimento de maturação democrática. Reconhecer que o STF tem limites não é negar sua importância, mas reafirmar sua função dentro de um arranjo republicano, no qual nenhum Poder é absoluto — ainda que invocado em nome da Constituição.
Como sublinhou Pierre Rosanvallon (2006), a democracia contemporânea deve buscar novos mecanismos de legitimidade e controle, sem perder de vista que a soberania popular continua sendo o critério fundamental de justificação do poder.
Nesse sentido, propor contenções ao avanço da juristocracia é, paradoxalmente, preservar o próprio STF enquanto Corte Constitucional, e não transformá-lo em um suprapoder político de natureza tecnocrática e autorreferente.
6 – Considerações Finais
A análise empreendida ao longo deste artigo buscou compreender, sob uma perspectiva crítica, o fenômeno da juristocracia no Brasil — entendido como a centralização da autoridade normativa nas mãos do Poder Judiciário, em detrimento do processo político-representativo tradicional. Embora a atuação do Supremo Tribunal Federal tenha sido essencial para a consolidação de direitos fundamentais e para a contenção de retrocessos institucionais, os limites dessa atuação precisam ser cuidadosamente delimitados.
A pesquisa demonstrou que a juristocracia brasileira possui características próprias: forte concentração institucional no STF, uso reiterado de decisões monocráticas em matérias de elevada relevância constitucional, e omissões sistemáticas do Legislativo que transferem ao Judiciário a função de legislador substituto. Essa realidade, se não for enfrentada com reformas e redefinições procedimentais, pode comprometer a saúde democrática da República e enfraquecer os princípios da soberania popular, da separação dos Poderes e da colegialidade.
A contenção normativa da jurisdição constitucional, por meio da valorização do julgamento colegiado, da limitação das medidas liminares individuais e da revalorização do processo deliberativo parlamentar, emerge como caminho necessário para reequilibrar o sistema e fortalecer as instituições democráticas.
Propor tais medidas não é restringir a função contramajoritária do STF, mas restaurar o fluxo legítimo da deliberação democrática, evitando que a exceção se converta em regra e que o Judiciário assuma, por inércia ou protagonismo, a função de metalegislador permanente.
A reafirmação da soberania popular como princípio fundante da Constituição de 1988 exige a redemocratização da normatividade: que o povo, por meio de seus representantes eleitos, volte a ser o sujeito primário da criação das normas que regem a vida coletiva — com o STF exercendo seu papel essencial de guardião da Constituição, e não seu intérprete absoluto e inconteste.
REFERÊNCIAS
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- ADI 4277 e ADPF 132 – União Homoafetiva BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277/DF e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132/RJ. Requerente (ADI 4277): Procuradora-Geral da República. Arguente (ADPF 132): Governador do Estado do Rio de Janeiro. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, 5 de maio de 2011 (julgamento de mérito conjunto). Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 14 out. 2011.
- ADO 26 e MI 4733 – Criminalização da Homotransfobia BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26/DF e Mandado de Injunção 4.733/DF. Autor (ADO 26): Partido Popular Socialista (PPS). Impetrante (MI 4733): Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT). Relator (ADO 26): Ministro Celso de Mello. Relator (MI 4733): Ministro Edson Fachin. Brasília, 13 de junho de 2019 (julgamento de mérito conjunto). Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 6 out. 2020 (publicação do acórdão da ADO 26).
- RE 635659 – Porte de Drogas para Uso Pessoal BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 635.659/SP. Recorrente: Defensoria Pública da União. Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Brasília. Julgamento iniciado em 19 de agosto de 2015 (em andamento até a presente data, 11 de maio de 2025). [Nota: Não há acórdão final publicado].
- MS 37.057 – Suspensão da Nomeação do Diretor-Geral da Polícia Federal BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Decisão Monocrática (Medida Cautelar) no Mandado de Segurança 37.057/DF. Impetrante: Partido Democrático Trabalhista (PDT). Impetrado: Presidente da República. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Brasília, 29 de abril de 2020. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 30 abr. 2020.
[1]As ideias sobre a judicialização da política, a tensão entre a proteção judicial da democracia e a manutenção de sua base deliberativa, são desenvolvidas por Habermas ao longo de sua obra “Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats” (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992). A tradução brasileira citada (“Direito e Democracia”) foi publicada em dois volumes, sendo o primeiro de 1997 e o segundo de 2003, abrangendo o conteúdo da obra original alemã.
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Advogado, Professor, Mestre, Escritor, Palestrante – Contato: wadihhabib28@gmail.com