Por Elieser César
Catalisada pela memória, pela iluminação do passado e também, para aproveitar a bela imagem de Camões, pela “grande dor das cousas que passaram”, a poesia de Ruy Espinheira é marcada por um cintilante incomformismo com a morte, com o efêmero, com tudo o que se apaga como uma lâmpada que se queima e não acende mais.
Daí a opção do poeta, contista, romancista e ensaísta baiano por buscar no passado a matéria-prima de sua poesia: a infância, os amores que foram mas que ainda pulsam resgatados no tempo dominado pela arte, os parentes e amigos mortos, todos transfigurado pela mão do artista pela redenção da memória numa dourada permanência.
Esse incomformismo com as perdas, é expresso pelo poeta, agora também memorialista, no poema até então nédito Dos Incoformistas, publicado no livro de memórias de Ruy Espinheira Filho, Na Orla do Ocaso, com o subtítulo Memórias de Vda e Literatura, sendo que na trajetória desse artista vida e literatura sempre caminharam juntas como irmãs seamesas. Destacamos o trecho:
“Verdade, não me conformo
com esses rituais da morte.
Nem com a própria morte
pelo que bem sei.
Não, não me conformo com a morte.
E não me digam para desistir,
que não adianta,
que depois da morte
me conformarei.”
Sobre essa imersão no passado, marca maior da lírica de Ruy, o poeta e tradutor Ivan Junqueira esclarece na conferência O Lirismo Elegíaco de Ruy Espinheira Filho, pronunciada em 1996 na Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo, incluída no livro O fio de Dédalo e reproduzida em Na Orla do Ocaso: “O que o anima, na verdade, não é o tempo passado nem o tempo presente, mas uma espécie de pantempo que os reúne e os redime no tempo futuro.”
Neste pantempo, todas as perdas, todas as alegrias e as dores da vida, permanecem brilhando na memória, como um filme antigo que se passa diante dos olhos, pois como diz Ivan Junqueira, citando T. S Eliot (e poderia também ter citado Marcel Proust), “Somente através do tempo o tempo é conquistado.”
Sobre a decisão de escrever suas memórias, Ruy Espinheira Filho observa: “Quanto aos que talvez achem que não sou importante o suficiente para escrever memórias, respondo que me acho tão importe quanto os demais humanos, pois penso que todo mundo deveria escrever suas memórias, como já escrevi em muitos textos de poesia e ficção, porque não há duas histórias semelhantes, duas vidas iguais, e todas, mesmo as mais humildes têm coisas importantes a nos contar e ensinar.”
RETALHOS DA VIDA
Acrescente a isso que, para um autor de muitos livros, premiado na poesia e na prosa e tendo sido escolhido um dos vinte poetas contemporâneos mais importantes do Brasil, em consulta a escritores, críticos, professores e jornalistas de Cultura, é quase um dever e um imperativo literário escrever suas memórias.
E o que, nós leitores, esperamos das memórias de um escritor que admiramos? Muita coisa e algumas epifanias, como o seu processo de criação, as influências literárias, os comentários sobre seus livros, as amizades, a lembrança das pessoas que morreram, mas que permanecem no incomformismo do artista em não aceitar a morte, pelo menos esse totalitarismo absurdo da morte. Em maior ou menor grau tudo isso está em Na Orla do Ocaso.
Ruy chama suas memórias de “colcha de retalhos”. Sim, de retalhos cerzidos do tecido flamejante da vida, da infância em Poções, da adolescência em Jequié, dos anos de boêmia literária em Salvador, da alegria incontida dos primeiro livro, como da alegria igual em ver os filhos nascer e crescer, e da celebração da poesia é da amizade. Há também exertos dos seus livros, de poesia e prosa.
E qual foi o objetivo secreto de Ruy Espinheira Filhos, ao aceitar, aos 80 anos de idade, o desafio feito pelos filhos Mario e Matilde para escrever suas memórias? Talvez evitar a queda no grande vazio da existência a que nos conduz, inevitavelmente, a velhice. Deixemos o poeta falar:
“Aos meus alunos da universidade, eu às vezes dizia que o que realmente temos é o nosso passado, porque o presente é uma iluminação fugaz, e o futuro mera especulação. O passado é algo que houve e continua vivo em nós, embora possa também se transformar em ficção, ao menos parcialmente, porque a memória imagina… Conseguem conceber um ser humano sem lembranças da vida? O que terá ele de seu, sobretudo no avançar da idade? Vazio. Um grande vazio. Sim, o que fará dele um ser tristemente desabitado.
Felizmente, fui sempre, além de poeta, também um prosador da memória. Porque nela, na memória é que tenho vivido grande parte de minha existência. Que pode não ser grande coisa, mas jamais me senti um ser tristemente desabitado.”
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Escritor e jornalista / Foto: Maria Cecília