Por Gilfrancisco
Cada ´mundo´ da região, tem a sua própria História, contornada de maneira diferente, porém agregada a uma só, que recua aos primórdios dos tempos brasileiros. ´Mundos – as grandes e pequenas comunidades do recôncavo – com extraordinárias reservas de surpresas, e imenso patrimônio. As vozes dos seus cantos são às vezes idênticas, enquanto os sons que as acompanham podem não concordar entre si. Seus ritmos são variações de um ritmo, de uma única cadência básica. Um universo onde o negro prepondera nas expressões lúdicas, e os preconceitos, se não são nulos, regulam-se pelos mais baixos índices.
Nélson de Araújo
Morto em abril de 1993, aos 67 anos de idade, Nélson de Araújo, sergipano de Capela, deixou inéditos vários textos de ficção, teatro, ensaística e pesquisa folclórica. Autodidata, escritor, jornalista, teatrólogo, folclorista, editor, professor universitário e pesquisador, souberam como nenhum outro, em cada uma dessas áreas, desempenhá-las com erudição.
Sua vasta produção é considerada da mais alta importância: Um acidente na estrada e outras histórias (prêmio Gerhard Meyer Suerdieck), 1957; A Companhia das Índias, 1959; Cinco Autos do Recôncavo, 1977; História do Teatro, 1978, Baile Pastoril da Bahia, 1979; Entre Melpômente e Clio, 1982; O Império do Divino Visto pelos olhos de Pisa-Mansinho, 1984; Folclore Político, 1988; 1591 – A Santa Inquisição na Bahia, 1991; entre outros, além de ter realizado várias traduções: Salomé, Oscar Wilde; Problemática da Estética e a Estética Fenomenológica, Moritz Geiger; Macbeth, Shakespeare.
Residindo em Salvador desde os anos 40, fora acolhido pela amizade do editor Pinto de Aguiar, diretor da Livraria Editora Progresso, uma das editoras privadas de grande envergadura a existir no Nordeste. No decorrer dos anos 50 assumiu o cargo de revisor de provas, depois revisor de originais, por fim assessor-consultor, sem eliminar as duas outras posições, até a sua extinção, no início dos anos 60.
Acompanhei sua trajetória a partir do início da década de 1970 e em algumas oportunidades trabalhamos juntos. Seguindo as pistas de Sílio Boccanera Júnior, localizamos em Salvador dois teatros. O primeiro, Teatro São José, situado próximo a Capelinha de São José, que apresentava espetáculos uma vez por mês. Esse teatro funcionava desde 1845, com estatutos particulares que regulamentavam a política interna, as condições da associação, os encargos e obrigações de cada sócio. O prédio encontra-se em perfeito estado de conservação e fora fotografado por Nélson.
A outra descoberta nossa foi o Teatro Familiar, situado na rua do Caquende, 110, na casa do major Polidoro Bittencourt, que armou em sua vasta sala de jantar elegante palco. Nele, exibindo-se dramas e comédias, tomando parte nos espetáculos toda a sua família. O teatro funcionou onde é hoje a Escola de Engenharia Eletromecânica, ao lado da Academia de Letras da Bahia. A estrutura do prédio é original, sendo o mesmo fotografado por Nélson de Araújo.
Recentemente, ao realizar uma pesquisa sobre a literatura no Brasil Colonial, deparei com mais um teatro, não mencionado por Boccanera Júnior. Trata-se do Teatrinho da Sociedade Dramática, situado na Rua de Baixo, 121, que era administrado por um conselho composto de: presidente, dois secretários, tesoureiro, zelador, três diretores para cada trimestre, conforme registrava o Almanaque para o ano de 1845, Bahia, impresso pela tipografia de Manoel Antônio da Silva Serva.
Ainda não se fez um inventário de tudo que Nelson de Araújo publicou em periódicos baianos e sergipanos, pois sua participação na imprensa dos anos 50 e 60, na efervescência cultural que agitou a Bahia com a criação da Universidade Federal, são marcantes para a historiografia do teatro e folclore baiano. Aliás, em conversa com o então secretário de Educação e da Cultura do Estado de Sergipe, professor Luís Antônio Barreto, pelos idos de 1996, nos primeiros meses em que morava em Aracaju, sugerir a ele a realização de uma pesquisa para recolher os textos esparsos de Nélson de Araújo publicados na imprensa sergipana. Na época ele mostrou-se bastante interessado em publicar parte da obra esparsa de Nélson de Araújo, mas passados três anos daquele contato, nunca obtive o retorno que assegurasse o início da pesquisa, o que é lamentável.
Nélson era um farejador, rastreador de documentos raros e muito aprendi com ele, que muito vivenciou e contribuiu para a vida cultural, intelectual e acadêmica da Bahia. Essa grande figura humana, exemplar em todos os seus aspectos, nos deixou há exatamente seis anos, cabendo a todos nós, baianos e sergipanos, agradecidos por tudo de bom que fez, preservar e divulgar a sua obra.
Pequenos Mundos
As sociedades evoluem e com elas a sua cultura, a cada fase corresponde um conjunto de mitos, lendas, signos, significantes e significados, partes integrantes das crenças, costumes, temores e sonhos de cada povo. Porque a história do homem é essencialmente a história de sua comunicação, primeiramente com os elementos da natureza que o rodeava e numa segunda etapa, a codificação de suas experiências pictográficas e depois por signos. Os costumes e estilos de vida são, quase invariavelmente, o produto adaptativo bastante inteligíveis e os modelos de vida por mais aparentemente bizarros e irracionais que sejam, podem ser compreendidos como forma prática de adaptação a condição bastante terra-a-terra, econômicas, sociais, etc.
Este livro, um panorama da cultura, popular da Bahia, tomo I (Recôncavo); tomo II (Litoral Norte/Nordeste, O São Francisco, Chapada Diamantina e Serra Geral da Bahia), tomo III (Tabuleiro de Valença, O Folclore da Região Cacaueira e do Extremo Sul, A Bahia Pastoril, Extremo Oeste), publicados pela Universidade Federal da Bahia, Secretaria de Cultura e Turismo, e Fundação Casa de Jorge Amado, entre 1988 e 1996, totalizando quase 900 páginas.
É a incoerência da elite pensante brasileira, na universidade ou fora dela, da direita ou da esquerda, que atropela todo o processo da nossa identidade nacional-cultural. Ora, a cultura se internacionalizou totalmente, e assim, cabe aos intelectuais brasileiros destacar a cultura nacional, considerando que o essencial é a incorporação ao universo cultural. Por tudo isso é que o capelense Nélson de Araújo preferiu pensar a cultura por conta própria, assumindo os riscos, mas abrindo frequentemente muitos caminhos nessa empreitada. É o esforço de pensar a cultura e a sociedade que serve de fio condutor para esses Pequenos Mundos, que ganha força em sua forma mais pura, permitindo que eles venham à tona desprovidos de censura ou classificações com o estilo.
Pequenos Mundos é na realidade uma análise em profundidade, um esforço reflexivo, declaradamente aberto sobre a problemática da cultura popular. Essa obra prima é um acontecimento fruto de uma visão integral, para a contribuição à história da evolução e/ou destruição da cultura popular no país. Seu autor é um dos nomes mais representativos sobre o assunto no Brasil de hoje, e seus textos estão atravessados de ponta a ponta, pela marca do pesquisador, aberto, livre e independente.
Sagrado, se é que existe o sagrado, é mistério para aqueles que admitem o mistério. Trata-se do mais importante testemunho de uma significante parte da vida cultural brasileira, onde levanta todo um painel dos diversos aspectos sociológicos, artísticos e antropológicos. Nélson de Araújo nos traz um trabalho leve e ágil, numa linguagem jornalística, sem qualquer ranço científico, numa contribuição máxima para a cultura popular, em aspecto ainda não pesquisado. É na verdade uma amostragem do que o referido professor e pesquisador pôde oferecer em vida, revelando-se um homem de ciência, voltado para o problema da tradição popular, tão desprezada por pesquisadores e instituições governamentais.
A obra reúne o que há de mais expressivo, do folclore baiano, certamente uma das mais importantes manifestações da cultura popular brasileira, se não a mais importante, que vem sofrendo acentuadas mudanças em sua estrutura socioeconômica com alterações em sua composição étnica e em sua herança cultural. Os três volumes dos Pequenos Mundos, não se destinam apenas aos pesquisadores e mestres do ofício, mas ao público em geral, às próprias comunidades que ainda preservam com muitas dificuldades as suas tradições culturais que, cada vez mais, vai sentindo a necessidade e importância dos estudos sobre o folclore.
A reunião dos três tomos tem a responsabilidade de uma primeira investigação sistemática sobre o assunto e procura dar respostas à indagação, fundamentando-se numa pesquisa de campo que se desenvolveu por muitos anos. Foi, um projeto, ambicioso, nunca realizado no Brasil, magnífico estudo antropológico e cultural, conseguido com dificuldades de toda espécie, muita luta, paciência, garra e longos anos de peregrinação por todo o Estado da Bahia. Estive presente em algumas viagens e testemunhei os espetáculos populares desses pequenos mundos.
O procedimento adotado por Nélson de Araújo para a elaboração de Pequenos Mundos foi o testemunho dos eventos, ou a tomada de entrevistas, através da equipe de pesquisadores (estudantes) da Universidade Federal da Bahia, que se deslocaram para as respectivas regiões, além de informações complementares que foram recolhidas mediante um questionário elaborado pelo autor e enviado às prefeituras municipais, bem como aos representantes da Fundação IBGE no interior da Bahia.[1]
Obra
Professor das disciplinas História do Teatro e Expressão Dramática no Folclore Brasileiro, da Escola de Teatro, da Universidade Federal da Bahia, com trabalhos de pesquisas realizados em várias universidades brasileiras, Nélson de Araújo é autor de doze livros, sendo três de ficção. Além de ter realizado cinco traduções de peças
Post-scriptum – I
Nélson de Araújo: Memórias Reveladas
Em Sergipe continua um ilustre desconhecido. Radicado na Bahia desde 1949, Nélson de Araújo publicou mais de uma dezena de livros e deixou uma obra esparsa em jornais e revistas baianas a espera de uma compilação. Alguns dos seus livros como A História do Teatro, 1978, 2ª Ed. 1990, veio enriquecer a bibliografia brasileira sobre o teatro. Outro livro de grande destaque no circuito universitário é Pequenos Mundos – um panorama da cultura popular da Bahia, três volumes, 1986, 1988 e 1996, constitui parte de um esforço amplo para registrar as mais variadas manifestações populares da Bahia, e mereceu dissertação de mestrado sob o título de Nos Pequenos Mundos da Bahia – uma aproximação entre a obra de Nélson de Araújo e a Etnocenologia, defendida em 1999 pela acadêmico do curso de teatro, Adailton Santos.
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Lembro-me perfeitamente da profunda emoção e surpresa que sentir ao ler o primeiro livro da literatura sergipana do capelense radicado na Bahia, Nélson de Araújo (1926-1993), Companhia das Índias – farsa em três capítulos, em 1969, ano do meu alistamento militar, primeira e única detenção no Quartel de São Joaquim e no Quartel da 6ª Região Militar, do ingresso como servidor público na Reitoria da Universidade Federal da Bahia, reitorado do professor Roberto Santos. Este mesmo livro fora editado anteriormente (1959) pela Livraria Progresso Editora/UFBA/Cadernos da UBE, coleção Paralelo 13, nº 3, em formato de bolso, tinha uma cuidadosa capa de Lênio Braga. Na época da publicação, o livro teve grande repercussão, devido à sua encenação em 1958, no Teatro Santo Antônio (Escola de Teatro da UFBA), e muitos desses livros ficavam amontoados no minúsculo Departamento Cultural (no subsolo da Reitoria, onde se instalou a primeira sede da Escola de Teatro até 1958), dirigido pelo professor, historiador e antropólogo espanhol Valentin Calderón de La Vara, diretor do Núcleo de Publicações da UFBA.
Após a leitura, meu pai Odilon Francisco dos Santos (dorense e funcionário da Reitoria) colocou-me em contato com Nélson, professor da Escola de Teatro e editor das publicações do núcleo da UFBA. O livro trata, através da sátira, das revoluções sul-americanas e, quando publicado em 1959, mereceu um brilhante artigo do jovem cineasta baiano, Glauber Rocha, que pela repercussão dos comentários nos círculos literários foi republicado na Revista Leitura, no Rio de Janeiro, em dezembro desse mesmo ano. Eu não imaginaria que décadas depois moraria em Sergipe e dedicaria- me aos estudos literários e culturais sergipanos e escreveria um livro sobre o amigo Nélson de Araújo. Mas vejamos um pequeno trecho do comentário de Glauber Rocha:
“Aqui não está, é claro, um problema de ficção. Mas de linguagem. A diferença que existe entre Nélson de Araújo e Sadala Maron (outro ficcionista baiano de grande importância) é que, enquanto o primeiro contista repulsa absolutamente o conto experimental, o segundo se aprofunda seriamente no ramo. Ambos possuem capacidades. Em Nélson de Araújo – que interessa no momento – existe forte justificativa: a mesma “formação” que apontamos como defeito fundamental de Um acidente na estrada, mas que, agora, em A companhia das Índias, se evidencia como fator provável a impedi-lo num caminho que pode ser de beco sem saída. Dissemos num artigo passado que o experimental só pode valer se transpuser os limites da experiência para uma consumação. Esse é o dilema presente de Sadala Maron, que ainda não se encontra ciente de publicar em livro. Em Nélson de Araújo – situando-se a Companhia das Índias – essa formação, ao contrário do que antes ocorrera, lhe abre um caminho reto, a não ser que uma inquietude interior o leve a irromper em outro sentido.”
Sobre Nélson de Araújo, Glauber já havia registrado seu talento, através de sua coluna: Correspondência da Bahia, publicada na revista carioca BBB – Biblioteca Básica Brasileira, nº10, novembro de 1958:
“Nélson de Araújo traduz contos de James Joyce para uma futura edição. Já terminou uma peça teatral em três atos, intitulado A Companhia das Índias, sátira das revoluções sul-americanas, que será editada pela UBE: Os Cadernos de Cultura, agora passam para UBE, embora perdurem com a necessária assistência da Reitoria.”
Outra crítica que muito ajudou a Nélson de Araújo nas suas investidas no campo da dramaturgia foi feita pelo conterrâneo Mário Cabral, que em abril de 1960 publicou no Jornal da Bahia:
“É realmente triste. Mais do que triste, é profundamente desalentador que um trabalho como A Companhia das Índias, de Nélson de Araújo, não haja conquistado, em nosso meio cultural, uma justa e merecida repercussão, mais se trata de uma excelente realização literária, conduzida com inteligência, originalidade e bom gosto. Além disso, um trabalho muito bem escrito, de uma urdida vernácula, que tivesse de passagem, foge ao estilo comum de que se escreve e imprime, todos os dias. Estive presente ao lançamento do livro. Houve abraços, parabéns, convencionais palavras de louvor e de encomia. Mais depois, sobre ele,caiu um definitivo silêncio tumular. A crítica, nada disse. O poder público, esteve ausente. As entidades teatrais não opinaram. Os cenáculos literários, dentro, aliás da sua melhor tradição negativista continuaram isoladas em sua torre de marfim, envoltos em uma indiferença que se não pode compreender ou justificar.”
Durante os anos 1970 e 1980, período em que me encontrava lotado na Reitoria da UFBA, almoçávamos quase que diariamente na Escola de Teatro, antigo Solar Santo Antônio, pousada que abrigava estudantes e comerciantes vindos das cidades do interior, bem próximo ao Palácio da Reitoria, Rua Araújo Pinho. D. Cotinha e Sr. Olegário eram os “proprietários” da Cantina, um casal de idosos muito amáveis, que sobreviviam com ajuda dos netos para servirem os almoços. O ambiente era harmônico. Tempos depois, o espaço fora arrendado por Orlanita Ribeiro atriz formada na própria na Escola de Teatro, que naquele momento estava envolvida com os Florais do Dr. Bach, buscava a luz do futuro. Orla era uma excelente atriz e havia trabalhado em várias peças, entre elas A Casa de Bernarda Alba, de Garcia Lorca. Além de ser querida por todos, vivia sempre implicando com a adolescente Zizi Possi, aluna do Curso Livre e irmã de José Possi Neto, teatrólogo paulista que dirigiu a Escola de Teatro, entre os anos de 1971-1976. Dava para perceber que era ciúme, existia um flerte entre nós que se concretizaria no inicio dos anos 90, quando passamos a morar no Condomínio Lagoa Verde, reduto dos jornalistas baianos. Almoçávamos também na Cantina de D. Hildete Cantalino na Escola de Belas Artes, onde eu estudava. Estávamos sempre em busca de novos temperos da culinária baiana e certamente de olho nas alunas. Ambas as Escolas tinham semelhanças: na arquitetura do casarão, no jardim florido e bem cuidado, as mesmas árvores centenárias e por fim o público frequentador. Vez por outra topávamos com Leonardo Alencar, recém-chegado da Europa.
Durante o almoço conversávamos sobre tudo: os novos projetos, literatura, as pesquisas, as intrigas jornalísticas, por aí a fora. Às vezes após o almoço, íamos andando até o Centro de Estudos Afro-Orientais – CEAO que ficava na Rua Leovigildo Filgueiras – Garcia, acertar algumas pendências com a professora Iêda Maria Castro (Diretora) ou consultar alguns livros com o bibliotecário Climério Joaquim Ferreira. Foi numa dessas idas que conheci José Ramos Tinhorão, que pesquisava a música de barbeiro, tema do seu próximo livro. Resolvidos os problemas, retornávamos ao ponto de partida e nos dirigíamos até o Bar Bohemia de propriedade do simpático casal argentino, Célia e Mário, localizado em frente da Escola de Teatro, num amplo casarão onde funcionou por algum tempo sessões da antiga Bahiatursa, discutir assuntos referentes a trabalhos em andamento, sempre acompanhado de uma cervejinha. Freqüentávamos esse Bar por vários motivos: à aproximação da Escola e o atendimento respeitoso dos proprietários e funcionários do estabelecimento. Era um ambiente de alunos e professores, procedentes das Escolas: de Belas Artes, Dança e Teatro. Foi nesse ambiente de sedução que o poeta Elizeu Moreira Paranaguá, namorou e casou com a única filha do casal argentino, Débora Judith Arber com quem teve uma filha de nome Júlia Sarah Moreira Arber. Interessante era que eu e Nélson gostávamos da mesma garçonete, Nina a morena cor de sapoti que se vestia diariamente de baiana, para alegrar a clientela. Na fase crítica da enfermidade de Nélson de Araújo, passou a beber cerveja natural e solidariamente eu tinha que acompanhá-lo. No início era horrível, descia com muita dificuldade, aos poucos fui me acostumando, e por fim a gostar.
Nélson era muito cuidadoso nas suas pesquisas, minucioso, detalhista e metódico até enjuado nas atitudes particulares, como o cuidado excessivo com o automóvel. No inicio dos anos 70 era um Ford Corcel do ano de 1969, quatro cilindros, duas portas, modelo Cupê de cor amarela. Estava sempre limpo, internamente cheirando a novo. Depois ele comprou de Dr. Raimundo Vasconcelos, representando do BID, junto a Universidade, meu chefe, um VW, quatro portas, 1600 de cor creme ou marrom, com teto preto (não era pintura e sim curvin, usado na indústria automobilística). O carro era confortável, desenvolvia bem e tinha o apelido de Zé do Caixão (ele tinha três grandes alças junto ao teto, e por isso foi chamado de “Zé do Caixão”, o nome artístico de José Mojica Marins, na época criador de filmes de terror que ficou internacionalmente conhecido. O carro saiu de linha em 1970, rejeitado pelos consumidores.
Com a presença de Possi Neto na Universidade Federal da Bahia, a Escola de Teatro se transformou, e foram implementadas algumas reformas, pintura interna e externa do prédio, consertos das poltronas, implantação do palco giratório idealizado pelo diretor e coreógrafo alemão Ewald Hackler, esposo da professora do Instituto de Letras, Maria da Conceição Paranhos, que conseguiu num Ferro Velho um destroço de tanque de guerra, e a intensificação dos Cursos Livres. Sob sua direção foram encenadas várias peças, com grande repercussão positiva da crítica e do público: Momento Processo (1971), Monte Santo (1972), A casa de Bernarda Alba (1973), Tito Andrônico (1973), Álbum de Família (1975), Canção Transitiva (1976), American Dreams, Marylin Miranda e outras. De certa forma, essas mudanças tinham a colaboração de Nélson. Acho que foi um dos períodos do teatro baiano em que consegue seduzir o público e formar uma nova platéia, uma parte considerável dos ingressos era distribuída entre os funcionários das unidades da Universidade, e sem dúvida possibilitou acesso aqueles que nunca tinham ido ao teatro.
Entre os dias 11, 12 e 13 de setembro de 1990, Salvador foi o palco do I Encontro de Editoração da Bahia, evento comemorativo dos 75 anos da Empresa Gráfica da Bahia- EGBA, com o intuito de examinar e debater as questões de produção e comercialização do livro na Bahia, estabelecendo paralelos para o seu futuro desenvolvimento. Como parte da comissão organizadora juntamente com Cidélia Argolo, Luis Guilherme Tavares, Nelson Cerqueira, Matilde Schmittmann e Esmeraldo Coelho, realizamos o evento no auditório da Fundação Pedro Calmon e abrimos com um convidado especial, o contista, dramaturgo, tradutor e editor Nélson de Araújo, que relatou sua trajetória como editor da Livraria Progresso Editora até sua experiência como proprietário do Selo ViceRey, cujo resultado do depoimento foi o livro Editoração ato de amor ao livro, nº1, coleção conversa de Editor, Instituto Baiano do Livro, 1997.
Como editor Nélson de Araújo teve grande importância na editoração baiana, concebeu duas coleções de reconhecido valor: a Coleção Tule, mantida pela Imprensa Oficial da Bahia – IOB, de 1959 a 1961 para divulgar autores baianos, alguns como Vasconcelos Maia e Jair Gramacho, e as Publicações do Museu do Recôncavo Wanderley Pinho, série de ensaios da história, arte e etnografia baiana. Nélson foi ainda diretor-redator-chefe de Afro-Ásia, revista do centro de Estudos Afro-Orientais, secretariou e depois redator-chefe de Universitas revista de cultura da Universidade Federal da Bahia.
Nos últimos tempos, Nélson de Araújo encontrava-se bastante fragilizado, alimentava-se pouco fumava e bebia muito. A tosse seca, a voz pausada e a destruição de toda arcada dentária pela falta de recursos financeiros para realizar um tratamento dentário, apresentava um quadro dantesco para um professor universitário, e que já havia dirigido aquela Instituição de Ensino. Por várias vezes presenciei afastar-se da sala de aula porque se sentia cansado. Dirigia-se até o jardim, tomava fôlego e aparentemente recuperado, voltava para a sala. Igualmente a Martim Gonçalves (1919-1973), primeiro Diretor da Escola de Teatro, morto em Santa Tereza (RJ), o sergipano Nélson de Araújo morreu em 7 de abril de 1993, aos 67 anos, pobre na amargura, residindo numa casa modesta de um bairro popular, Engenho Velho de Brotas, na Ladeira do Pepino, ambos os dramaturgos, difíceis de convivência, mas importantes para a historiografia teatral baiana. Nélson fez mais do que encenar peças; publica artigos sobre teatro na imprensa local, traduz peças consagradas, publica livros e pesquisa cultura popular nordestina com os alunos da própria Escola.
Nélson tinha poucos amigos, o temperamento forte e explosivo, criaram alguns desafetos, os presentes eram o poeta e professor Carlos Sampaio e Lamartine Lima, médico e membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Como eu estava sempre disponível, ouvia todas as suas queixas. Lembro-me que quando pensou em escrever a história A guerra de Magali em São Jorge dos Ilhéus, teve o cuidado de consultar o amigo Jorge Amado para saber dele se aquele episódio de 1907 seria tema de algum dos seus livros. Quando publiquei o livrinho Manifestações Literárias no Brasil-Colônia: Gregório de Mattos e Guerra, coleção Cadernos Primeira Pedra nº2, 1992, Nélson escreveu palavras singelas: “Numa terra absolutamente destituída da crítica literária no rigor do termo, o trabalho de Gilfrancisco avulta como caso único. E necessariamente incompreendido.”
Por várias razões que nos aproxima, decidir associar-me ao jornalista e Secretário de Comunicação da Prefeitura de Aracaju, Marcos Cardoso, sobrinho do homenageado Nélson de Araújo, que há muito vem se dedicando a divulgar nesse Estado a sua obra, ainda não reconhecida pelos estudiosos da memória cultural de Sergipe, juntos ou separadamente organizaremos em livro, os textos esparsos do homenageado. [2]
Post-scriptum – II
Estamos em novembro de 2023. 30 anos depois do falecimento do jornalista, dramaturgo e folclorista Nelson Correia de Araújo. Após sua morte em 1993, sua obra começou a despertar algum interesse por parte de estudiosos baianos: Nélson de Araújo: pequenos mundos, um país sem memória, Gilfrancisco (1999); No Pequeno Mundo da Bahia – uma aproximação teórica entre a etnocenologia e a obra de Nelson de Araújo, Adilson Santos (1999); Nélson de Araújo, Gutemberg Cruz (2006); Aos 19 anos de morte de Nélson de Araújo, Marcos Cardoso (2012); O outro teatro de Nelson de Araújo, Thiago Herzog (2017); Nélson de Araújo um exílio em terras baianas, Lourdsnete Benevides (2020). Em 2019, juntamente com a professora do curso de teatro da Universidade Federal de Sergipe, Nete Benevides e a também professora renomada Beatriz Góis, elaboramos um projeto, para realizarmos um Seminário sobre Nelson de Araújo, mas fomos surpreendidos pela pandemia e o projeto fora abortado.
Em agosto de 2009, o jornalista sergipano Marcos Cardoso, sobrinho de Nélson de Araújo, foi empossado pelo Prefeito do município de Aracaju Edivaldo Nogueira, para assumir a Secretaria de Comunicação. Passados um bom tempo, o procurei na própria secretaria, levando a tiracolo uma pasta plástica de elástico com os originais (organizados e numerados) do livro Os Pequenos Mundos de Nelson de Araújo, título provisório. Resolvi procurá-lo porque além do parentesco, Marcos Cardoso havia morado em Salvador, por algum tempo na residência do tio Nélson e estando num cargo político como o que acabara de assumir, certamente não teria nenhuma dificuldade em conseguir um pequeno patrocínio para digitar os originais ou até mesmo custeá-lo, pelo insignificante valor. Conversamos e nada foi acertado ou prometido. Peguei a pasta e a levei para casa. Sempre que nos encontrávamos, ele dizia precisamos resolver o livro de Nélson e ficava nisso. Passados alguns anos, acertamos e ele foi com a esposa lá em casa, no conjunto Beira Mar, para pegar os originais do livro, segundo ele estava decidido assumir os custos. Falei com ele que contratasse os serviços de Euclides (diagramador) do Jornal da Cidade, cobrava bom preço com qualidade. Euclides já havia digitado dois livros a meu pedido, um José Calasans e outro sobre Canudos.
Por algum tempo fiquei cobrando, mas sem resposta positiva. Quando ele em 2016, foi trabalhar do Tribunal de Contas do Estado, gestão do Presidente Clovis Barbosa de Melo, assumiu a Direção de comunicação e mídias do TCE, intensifiquei a cobrança, porque trabalhávamos juntos. Foi aí que ele começou a procurar a pasta contendo os originais do livro organizado por mim, sobre Nélson de Araújo. E não demorou veio a inesperada resposta; não encontrei, revirei a casa toda. E me perguntou se eu havia realmente entregue essa pasta a ele. Na hora nem sei dizer o que senti, acho que raiva, uma pesquisa que eu havia me dedicado desde a morte de Nélson, estava perdida. E ficou por isso mesmo. Ele não teve a coragem de registrar na imprensa o ocorrido, mas eu sim. Vejamos o Sumário do livro entregue ao jornalista Marcos Cardoso, juntamente com os originais.
Post-scriptum – III
S U M Á R I O (originais perdidos por Marcos Cardoso)
Apresentação
…………………………. Marcos Cardoso
Introdução
Os Grandes Mundos de Nélson de Araújo * GILFRANCISCO
Entrevistas
Uma cruzada pelo teatro popular * Márcio Meireles
Originais Sedutores * Florisvaldo Mattos
Julgamento Crítico
Panorama do conto baiano * Renard Perez
Nélson de Araújo e “A Companhia das Índias” * Glauber Rocha
Quatro escritores da Bahia * Jorge Amado
Pequenos Mundos da Bahia * Fernando Oliveira
Vida, Paixão morte republicana…* Gustavo Falcón
Quase 40 anos como editor * Luís Guilherme
Definitivo entre os melhores * Paulo Dourado
Nélson de Araújo: um novo realismo brasileiro * Aluysio Sampaio
Decenário de uma perda * Lamartine Lima
Caçador de Singular e Plural * A Tarde
Teatro: 4 textos para encenação * Altimar Pimentel
Um Acidente na Estrada * Dias da Costa
Um Acidente na Estrada * João Santana
O Caçador de Arcas * Rodrigues Lacerda
Nelson de Araújo um exílio em terras baianas * Lourdsnete Benevides
Contos Esparsos
O tenor e o Baile Pastoril
O Homem Sazonado
O Violino do Vento
Comédia Mediúnica
Andarilhos do céu, da terra e da memória
Uma noite de arte
Os Girassóis, o tempo
Crítica
Monteiro Lobato consciência de uma época
Carvalho e a Poesia
Teatro latino-americano
Versão portuguesa de Aristóteles
A percepção da realidade africana no Brasil
Ponteiros Acertados
Prefácios Primorosos
Terras da Imaginação
Kant antiimperialista
Notícias da Bahia
Notícias I.
Notícias II.
Folclore/Tradição
A puxada do mastro em Olivença
Folclore de Perdição
Reminiscência indígenas na missão do Saí
Fortuna Crítica
Subsídios Biográficos
[1] Jornal da Cidade. Aracaju, 22/23 de setembro,1999.
[2] www.cinformeonline.