Nossos comentários sobre a inveja, 3

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Por Joaci Góes
(Para a amiga e companheira de trabalho Maria de Fátima Carvalhal)
O pensador chinês Lyn Yutang já nos ensinava, em A Importância de Viver, que, independentemente da urgência ou da importância dos temas sob discussão, mesmo em momentos de grande crise, os mais solenes congressos interrompem seus trabalhos de modo a permitir que as pessoas se alimentem, adequadamente. Poucos são capazes de raciocinar ou decidir bem, sob o guante da fome.  Quem vive do bolso para a boca só consegue refletir, maduramente, sobre os riscos para sua segurança, decorrentes da precária implantação de seu casebre na encosta, sujeita a deslizamentos, quando satisfeitas, ainda que momentaneamente, suas necessidades fisiológicas. Nenhuma motivação derivada das necessidades fisiológicas e de segurança, respectivamente, salvo em situações de anormal excepcionalidade, é capaz de sensibilizar as populações, como um todo, das sociedades ricas ou afluentes, como as dos Estados Unidos, Canadá, Europa, Austrália, Nova Zelândia ou Japão. Países como o Brasil, onde há dois ou mais brasis, as populações oscilam de miserável a muito rica. Aí, as necessidades predominantes, no plano das classes sociais, variam de um modo, praticamente, desconhecido nas sociedades afluentes. Quando um norte-americano diz: -estou faminto, o que ele está querendo dizer, com toda probabilidade, é que ele está com grande apetite. Quando um nordestino do Polígono da Seca diz a mesma coisa, o provável é que esteja falando daquela fome crônica, da avitaminose que depaupera e mata.

Desse contexto resultam como corolários:

1º) só as necessidades ainda não satisfeitas é que funcionam como estímulo;

2º) uma vez satisfeitas, as necessidades não mais operam como fator motivacional.

Façamos agora, à guisa de exercício exploratório sobre a expansibilidade da inveja, a transposição desse conceito maslowiano dos indivíduos para as sociedades. A determinação, porém, do perfil psicossocial de uma comunidade é tarefa das mais complexas, mesmo quando possível uma avaliação criteriosa da personalidade de cada um dos seus membros. Da interação dos indivíduos nos planos de seus múltiplos interesses econômicos, políticos, culturais e emocionais, dentre outros, resulta uma organização social de fisionomia distinta de cada um dos seus componentes. Esta ilação de validade palmar em Sociologia não quer dizer que a configuração das sociedades humanas seja alheia às características dos indivíduos que as integram. Precisamente o contrário é verdadeiro: as sociedades humanas, por mais distintas que sejam dos seus membros, deles são o reflexo, a síntese e o produto final. De tal maneira que seria inconcebível a existência de uma sociedade cultural, tecnológica e cientificamente avançada cujos membros fossem analfabetos ou, num outro extremo, uma sociedade culturalmente atrasada onde os seus integrantes fossem dotados de amplos conhecimentos. A correspondência linear é o que se vê em toda parte e em todos os tempos: seres humanos desenvolvidos construindo sociedades avançadas; sociedades atrasadas produzindo pessoas de precária cidadania. A incessante mutualidade das influências faz com que causa e efeito se confundam.

O jurista e pensador J. J. Calmon de Passos (1920-2008) explica esta imbricação do indivíduo com a sociedade: “A imagem que melhor traduz, para mim, a dialética entre o indivíduo e a sociedade é a do tecido. Ele é algo em si mesmo, dotado de especificidade, impossível de ser identificado com ou equiparado aos fios de que se compõe. Ele é, entretanto, algo necessariamente constituído de fios, fios que não perderam sua identidade e sua especificidade por haverem produzido o tecido. É necessário atentarmos, contudo, para o fato de que se colocarmos fios em disposição horizontal, paralelos uns aos outros, porque meramente sobrepostos, porque não perderam algo de sua individualidade, nada produziram de novo ou consistente. Não haverá tecido, somente fios superpostos, sem consistência, sem unidade, sem coesão, sem função. Caso procedamos de modo diferente, colocando os fios horizontais, alternativamente, sob ou sobre os fios verticais, eles vão se entrelaçando e dando vida a algo novo, consistente, funcional, mais poderoso do que os fios de que foi tecido. Nós, indivíduos, somos os fios. Se, simplesmente, nos ajuntarmos, jamais seremos tecido, sociedade. Para sê-lo será necessário interagirmos, aceitando estarmos ora sob e ora sobre os outros, mas sempre a serviço do objetivo maior – criar tecido, sociedade -, algo diferente e novo que nos ultrapassa e nos enriquece, que nada seria, entretanto, sem cada qual de nós, como fio, como indivíduo, que como tal permanece, irredutivelmente, em que pese a novidade do que foi produzido com nossa interação”.(J. J. Calmon de Passos, Direito, Poder, Justiça e Processo – Julgando os que nos julgam,1999).

            Ao longo do seu processo de contínua evolução, os indivíduos influem, modificando os seus pares e as sociedades a que pertencem, ao tempo em que são modificados por eles. Cada parte é simultaneamente agente ativo e passivo desse mecanismo de mudança permanente. A ação voluntária ou espontânea dessa concausa ininterrupta impede a paralisia ou inércia do organismo social, ainda que a alternância de avanços e recuos possa parecer, aos olhos do observador leigo, um quadro de estagnação.