Por Alcione Bastos
Quando ouvimos a palavra “vingança”, rapidamente somos tentados a baní-la da nossa mente, afinal, a vingança é considerada como algo vil e baixo. Indigna de pessoas que são espiritualizadas, generosas e conscientes. Aí é que mora o perigo. Explico: Tudo o que rejeitamos, condenamos ou nos envergonha, costumamos jogar numa espécie de baú que fica no nosso inconsciente. Lá, essas “coisas” que são sentimentos, emoções, pensamentos e até ações, ficam quase esquecidas no nosso dia a dia se não fosse pelos malditos gatilhos espalhados ao nosso redor, sempre prontos para disparar e trazê-los à tona, causando em nós uma espécie de mal estar, angústia, rejeição, estranhamento. Um desses sentimentos é a vingança.
Rejeitamos por vários motivos e o maior deles é a moral cristã que nos ensinou a dar a outra face.
Acontece que não é porque nos dizemos cristãos que conseguimos ser como Jesus Cristo. Alguns até buscam seguir seus passos, outros o admiram e sabem que estão distantes de conseguir tal feito. Nós, meros mortais, não temos a prerrogativa dos Deuses pagãos que utilizam a vingança como uma reação natural e esperada sem que isso resulte em nenhum tipo de crítica ou julgamento moral. Os Deuses pagãos são amorais. Nós somos moralistas ou imorais mesmo.
Como não queremos na maioria das vezes reconhecer que somos vingativos e invejosos, quando nos sentimos injustiçados por algum motivo, deixamos pequenos planos e gestos de vingança escaparem do depósito de rejeitos inconsciente e zaz, cometemos pequenas mini maldades com o outro. Essas mini maldades ou pequenas vinganças, terminam por amenizar o sentimento de rancor e de injustiça e liberar um pouco o nosso baú de pequenas maldades.
Assim, a mulher somatiza uma dor de cabeça súbita impedindo os momentos de prazer que tanto agradam aos homens, eles por sua vez, esquecem datas importantes, desprezam os queixumes da mulher, outras vezes, crianças traquinas são negligenciadas; professores punem estudantes que cometem bullying contra os colegas; chefes arrogantes são sabotados e surrupiados; subordinados espezinhados que desperdiçam materiais, irmãos são boicotados, desprezados, humilhados. Quem nunca ouviu a recomendação de que não devemos reclamar do prato no restaurante sob pena de ter o prato com algo mais do que apenas temperos e ingredientes?
Mini maldades trazem alívio e geram satisfação, aplacam nossa angústia e diluem aquele sentimento denso do rancor que termina por passar despercebido mas que em geral duram anos.
Como seria se nosso inconsciente despejasse na nossa consciência, esse baú de rejeitos de uma só vez?
Muitas crueldades e até barbáries são cometidas por vingança declarada. Uma vingança pode durar anos para ser realizada e durante esse tempo, a mágoa vai se tornando cada vez mais sedimentada. Uma pequena inveja pode gerar uma grande vingança assim como uma grande inveja pode gerar várias mini vinganças diárias.
O filme Amadeus de 1984, dirigido por Milos Forman, conta a história de Wolfgang Amadeus Mozart, o brilhante e virtuoso pianista e seu professor Antonio Salieri. “Após tentar suicídio, Salieri confessa a um padre que foi o responsável pela morte de Mozart e relata como conheceu, conviveu e passou a odiar Mozart que era um jovem irreverente e talentoso e que compunha como se sua música tivesse sido abençoada por Deus”. Para quem não teve a oportunidade de assistir na telona, pode ver na Amazon Prime.
A mitologia que é o substrato da nossa Psique, a matéria de que ela foi formada e que descansa sob muitas camadas de histórias fictícias e reais, todas juntas, misturadas e emaranhadas. Nela, os personagens descrevem suas vinganças como se fossem seus dotes e talentos e também como elas representam seus troféus.
Na maioria das vezes, não nos damos conta que aquele nosso comportamento mesquinho se trata de escape dessas pequenas vinganças. Nem sempre elas se direcionam para a pessoa que foi a causadora da injustiça ou do delito e na falta da oportunidade ideal, ela recai em cima de alguém ou de uma classe de pessoas que representam aquela pessoa “culpada”. Outro filme bastante ilustrativo é Pequenas Cartas Obscenas, de 2023, que se passa na pacata Inglaterra de 1920.
Vi vários pacientes dedicarem toda uma vida, sem se darem conta, que estavam se vingando de algo que lhes aconteceu na infância, na adolescência, ou na vida adulta mas em outros relacionamentos. Inconscientemente essas pequenas vinganças e mini maldades vão sendo feitas contra quem for a representação da figura do “algoz”. Quando tomamos consciência, aquela energia perde força e podemos nos libertar da necessidade inconsciente das pequenas vinganças.
Final de ano é bem propício para fazermos balanços internos, limpezas de tralhas, de objetos que não mais utilizamos. Convido a fazermos uma busca no nosso depósito interno de rejeitos e de forma cautelosa, olhar para nossas mini maldades com coragem e aceitação. Esse é o primeiro passo a meu ver, para que possam ser ressignificadas.
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Médica e Sexóloga – @draalcionebastos