RELAÇÕES TÓXICAS EM FRASCOS DE PERFUME

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Por Alcione Bastos

Procusto era um vilão que vivia numa floresta na região de Elêusis, na Grécia. Ele possuía uma tática cruel. Convidava os viajantes que passavam por essa região, para descansar na sua casa. Lá ele oferecia uma cama para que eles se deitassem. À primeira vista, Procusto parecia um homem gentil: ele oferecia sua casa como abrigo a qualquer viajante necessitado que por acaso o encontrasse. Quando a pessoa dormia, ele amordaçava e amarrava-os em uma das suas duas camas. Uma era muito pequena e outra muito grande, assim que qualquer que fosse a escolha do viajante, ele nunca iria caber perfeitamente nas camas. Se a pessoa se deitasse na cama grande, ele esticava seus membros até que esses coubessem na cama, mesmo que tivesse que quebrar seus ossos para alongá-los e a pessoa terminava morrendo. Caso ele se deitasse na cama pequena, ele cortava a parte que estava sobrando seja a cabeça ou os membros, de forma que ninguém jamais havia sobrevivido a tal tortura. Bem, o fim de Procusto não foi diferente do das suas vítimas já que Teseu, herói grego, pôs um fim nessa história, colocando Procusto na mesma cama que ele colocava seus hóspedes e ele também morreu.

Mas porque afinal, estou falando dessa história terrível e o que isso tem a ver com o nosso texto? Algumas relações parecem tão boas e irresistíveis que não queremos abrir mão delas, mesmo que para isso tenhamos que “caber” no modelo de pessoa, projetado e desejado pelo outro. Horas deixando partes de nós de fora da nossa vida a dois. Outras vezes, nos sentimos não suficientes para o outro e buscamos a qualquer custo, atender às suas expectativas, fazendo para isso um sacrifício e mesmo assim, nos sentimos faltantes, devedores e por isso, aceitamos comportamentos e demandas que terminam por custar muito caro. São relações tóxicas, porém disfarçadas em frascos de perfume que aparentam ser maravilhosos e raros.

Por que motivo aceitamos relações que não nos cabem? Na verdade, a coisa é muito mais complexa e existem muitas razões pelas quais aceitamos relações tóxicas durante anos da nossa vida. Diversos fatores podem levar uma pessoa a se manter atada à uma “cama de Procusto”, dentre elas, a baixa autoestima, o medo de ficar só, a necessidade de subsistência, ficar preso à crenças e convenções sociais e dogmas religiosos, por permanecer seguindo padrões familiares incongruentes, por insistir na esperança de que a pessoa irá mudar, o que provavelmente nunca irá acontecer. A lista de motivos é muito grande. Existem ainda casos em que a pessoa se ilude achando que irá dar conta de atender aos exigentes padrões do outro, talvez acreditando ser alguém que não se é, comprando ilusões mostradas nas vitrines das redes sociais.

Não quero com isso dizer que devemos buscar a nossa metade da laranja como no mito de Aristófanes, recitado no Banquete de Platão. Longe disso, somos seres individuais e possuímos características próprias, nossos traços de personalidade que já nos causa muitas dificuldades na convivência com nossa própria família que dirá de outra pessoa que vem de uma família e ambiente distintos.

Internamente temos muitos personagens, que desempenham diversos papeis a depender do local e da função. Não somos apenas “um”, mas muitos. Por isso mesmo, que não nos conhecemos por inteiro. Essa talvez,  seja uma das dificuldades que temos na convivência diária com o outro. Quando conhecemos alguém que nos desperta interesse, vemos apenas os aspectos que nos agradam naquela pessoa, projetamos nela nossos desejos e expectativas, desprezando os comportamentos que não gostamos, assim, vamos passando a mão pela cabeça da pessoa. À medida que vamos descobrindo outros aspectos da personalidade daquela pessoa, que não nos agradam, achamos que a pessoa mudou, que não é a mesma etc. Somente quando conseguimos retirar as projeções que lançamos no outro é que poderemos analisar se poderemos aceitar suas características e idiossincrasias, só assim podemos desenvolver uma relação mais verdadeira, estável e equilibrada.

Se mesmo após passado esse período de adaptação nos sentirmos tolhidos, se percebermos que estamos deixando de vivenciar situações que nos são prazerosas, se nos sentirmos divididos e confusos, algo pode não estar bem nesse relacionamento. Quando nos sentimos ameaçados, ou a simples presença da pessoa nos gera ansiedade, angústia, medo, é sinal de que essa relação cheira mal, é tóxica. Mesmo estando dentro de um lindo frasco de perfume ela pode se transformar em um grande pesadelo.

Atire a primeira pedra aquele que nunca viveu uma desilusão amorosa ou teve um relacionamento tóxico. Vivi um relacionamento assim e só me dei conta que era tóxico algum tempo após ter rompido.

Gosto muito da concepção de se sentir confortável na relação, daquela sensação de aroma fresco no ar, a paz que se sente quando se pensa na imagem da pessoa e sua presença traz muito mais alegria do que chateação. Não devemos confundir adaptação ao outro com acomodação frente às decepções que vão se sucedendo. E vamos lembrar da história do sapo que ao ser lançado dentro de um caldeirão de água fervente, pulou rapidamente e conseguiu se salvar, enquanto um outro que foi colocado enquanto a água estava fria, porém sendo aquecida, aos poucos ele foi esquentando juntamente com a água e acomodando-se á temperatura que subia aos poucos, não conseguiu sair de lá e morreu escaldado.

Por fim, vamos ter cuidado com os belos frascos de perfume que contém veneno em meio à sua doce fragrância.

Médica e Sexóloga – @draalcionebastos
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Obs. Ilustração: Teseo ataca a Procusto. Pintura anónima em um jarro (440 a. C.) encontrado em Vulci (hoje Lácio), Itália.