Por Mário Vieira de Carvalho
Partindo da pesquisa e do exame crítico de um largo leque de fontes disponíveis, nomeadamente a correspondência trocada entre Adorno e Benjamin, em articulação com alguns dos principais escritos de ambos e outras fontes relevantes, Lucyane De Moraes lança nova luz sobre essa parceria intelectual única e irrepetível. Primeiro, na “Genealogia dos afetos” situa a amizade que os uniu – nos tempos conturbados de guerra, perseguição e exílio – e desfaz equívocos a esse respeito. Depois, guia-nos através de um itinerário que percorre tópicos e momentos particularmente marcantes do debate entre ambos, qual contraponto a duas vozes, em que, por definição, uma não pode passar sem a outra, ou, na sugestiva imagem da autora, “relação entre polos opostos que se atraem, representada pelo conceito de reflexão” – como uma “imagem no espelho, que reflete o seu contrário”. Complementa o volume com correspondência de Gershom Scholem e Hannah Arendt trocada com Adorno a respeito do espólio de Benjamin. Por fim, há ainda um apêndice com as muito úteis cronologias da vida e obra de cada um deles bem como uma nota sobre os critérios e materiais utilizados na edição.
O percurso pelos testemunhos de uma amizade de mais de vinte anos é realizado pela autora, não de uma maneira fria e distanciada, mas sim, digamos, expressiva, deixando transparecer a sua própria ligação afetiva ou empatia com ambos, enquanto filósofos ou pensadores e pessoas humanas, às quais o contexto social e político, um dos mais trágicos da história, balizado por duas guerras mundiais, colocava desafios de toda de ordem e, antes de tudo, o da luta pela sobrevivência. É sobre tal pano de fundo que se ergue um fecundo diálogo criativo, aqui reconstruído pela autora num exercício de pensamento crítico que, sem deixar de ser cativante para o leitor comum, faz deste livro uma referência indispensável para pesquisadores ou especialistas que se aventurem nas temáticas abordadas.
O livro levou-me a colocar uma primeira interrogação: que há nos escritos de ambos que mais os aproxima? Certamente em convergência com a autora, uma resposta se impõe: é a permanente reabertura do processo de produção de sentido.
Adorno questiona a pretensão da ciência moderna à razão absoluta e denuncia-a como ideologia, enquanto, por outro lado (e ao contrário de Marx), retira a “arte autêntica” da esfera da ideologia e atribui-lhe um “conteúdo de verdade”. Põe em causa os sistemas teóricos totalizantes, baseados num pensamento dedutivo, por sacrificarem à coerência do sistema a realidade, que não cabe nele. Reclama, para uma teoria social, exigências idênticas àquelas que reclama para a “arte autêntica”, irmanando ambas na “esperança de verdade”.
Cabe perguntar: não é todo o legado teórico de Benjamin, desde logo nas Teses sobre história ou em A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, o exemplo mais acabado de um pensamento crítico consonante com estes postulados? Não é o trabalho inacabado das Passagens uma monumental tentativa de chegar a uma teoria, a posteriori, por via fragmentária e indutiva? Não são as Teses sobre história uma refutação do materialismo histórico como sistema teórico totalizante preestabelecido, dedutivo? Não é, finalmente, o próprio discurso de Benjamin, com o seu pendor para imagens poéticas e para privilegiar a constelação e o fragmento à sequência linear, a contraprova da necessidade imperiosa de subverter a ideologia infiltrada na linguagem?
Onde divergem, sem deixarem de se complementar?
Aqui tomo como ponto de partida “a imagem no espelho, que reflete o seu contrário”, uma metáfora feliz da autora para descrever a relação entre Adorno e Benjamin como uma relação, ela própria, dialética, na qual as contradições não são resolvidas pela aproximação a um ponto intermédio, mas antes pela mediação recíproca entre os dois extremos.
Divergem, como sugere Adorno, por exemplo, no assestar dos “holofotes” em sentidos opostos na questão do “declínio da aura” da obra de arte, como consequência da sua reprodutibilidade técnica. A edição crítica do ensaio de Benjamin, publicada em 2012, contendo as várias versões do mesmo, acompanhadas de esboços e outros materiais que lhe serviram de base, ajuda a compreender as linhas essenciais do debate apontadas na correspondência e postas em evidência pela autora.
A definição de aura como “aparição única duma lonjura, por mais próxima que pareça”, corresponde, segundo Benjamin (2012: 216s.) à formulação do valor de culto da obra de arte em categorias de perceção espácio-temporal. Esse “invólucro ritual” ou “aura” teria migrado para a arte autónoma (a qual se afirma plenamente desde a época das Luzes, a época do desencantamento do mundo).
Adorno reconhece o declínio da aura diagnosticado por Benjamin na obra de arte, em consequência da sua reprodutibilidade técnica. Não subscreve, porém, as ilações que ele daí tira, como se infere mais imediatamente da correspondência entre ambos e do ensaio, nela mencionado, “Sobre o feiticismo na música e a regressão da escuta” (1938). Na argumentação de Adorno, a quem não podia escapar a convergência de Benjamin com Brecht, sobressaem, logo de início, neste ensaio, a colocação da arte autónoma na esfera do conhecimento e, a partir daí, a ênfase no lado não-emancipatório da reprodutibilidade técnica, massificada pelas indústrias culturais. “Emudecimento do ser humano”, “falência da linguagem da expressão”, “música transformada em mercadoria à custa do seu conteúdo de verdade”, “perda de sentido”, “poder do banal”, “reificação da obra musical no disco”, “consumo do êxito acumulado da vedeta”, “valor de troca transformado no objeto do prazer” – eis alguns dos traços do feitiço da mercadoria na música e da regressão da escuta que Adorno imputa à reprodução técnica e que contrapõe à emergência da arte autónoma.
O que se afirmara com essa viragem histórica – a preponderância do indivíduo sobre a coação coletiva, a pessoa não-subjugada como portadora da expressão e da própria humanização da música, a arte como portadora de algo de espiritual, tudo isso que era afim da liberdade – regredia. E regredia, porque, tratando-se de “arte autêntica”, a obra de arte musical era incompatível com uma audiência dispersa, requeria uma escuta concentrada e atenta “para ser captada no seu todo” pelo ouvinte – enfim, requeria uma atitude contemplativa que, há que reconhecer, se transfere da igreja para a sala de concertos, precisamente na época do “desencantamento do mundo”.
É claro que a reprodutibilidade técnica não implicava necessariamente a forma participativa ou ativa de lidar com a obra de arte, nem excluía a reconstituição da aura de que se pode revestir – como o próprio Benjamin esclarece – qualquer coisa possuída ou percebida por alguém (p. ex. um disco). E também é claro que – como Adorno, por sua vez, mostra – a forma recetiva e contemplativa pressuposta na sala de concertos não implicava necessariamente uma escuta atenta e concentrada, capaz de captar a obra musical no seu todo, nem, portanto, excluía espectadores dispersos ou distraídos, ou alienados ao valor de troca do ingresso…
Em síntese, se articularmos o ensaio sobre a obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica com as Teses sobre história, poder-se-ia afirmar que Benjamin, ao deslocar o seu foco da interpretação do mundo para a transformação do mundo, se afasta de Adorno na exata medida em que se aproxima de Brecht. Com efeito, Brecht contrapunha, por volta de 1930, à catarsis aristotélica uma dramaturgia não-aristotélica que liquidasse os “restos de culto” a que as artes teatrais ainda estavam agarradas, para estas poderem “passar do estádio em que ajudavam a interpretar o mundo para o estádio em que ajudam a transformá-lo” (Brecht, 1964: XV, 246) – uma transposição para as artes e os artistas da última das Teses de Feuerbach, de Marx, a respeito dos filósofos, que Benjamin, a meu ver, podia inteiramente subscrever.
Não é por acaso que ambos partilham do mesmo entusiasmo pelo Wozzeck, de Alban Berg, a que assistiram juntos na Ópera de Berlim, no espetáculo de 22 de Dezembro de 1925, o segundo após a estreia, a 15 de Dezembro. É uma obra que parece condensar as questões mais cruciais com que ambos se debateram.
Se a reconstrução de Alban Berg dos fragmentos de Büchner vale só por si e poderia ser representada simplesmente como peça de teatro, tanto mais surpreendente é o seu resultado final como ópera, em que a música tem um papel estrutural determinante. Nas soluções encontradas pelo compositor (descritas por ele próprio numa palestra de 1929), Adorno vê o paradigma do seu conceito de obra de arte, a qual, tal como a “teoria social”, não buscava a consistência num sistema preestabelecido, antes captava “as contradições como um todo, a situação antagonística como totalidade” (GS I: 479): “Berg realizou a suprema coerência da composição”, mas deixou de lado “a coerência do estilo, confiando mais na força monadológica da obra eloquente, que absorve em si mesma o inconciliável e o compele à expressão, do que na pureza do idioma, em que a contradição indelével meramente se dissimula” (GS XVI: 95).
Este breve excurso pela ópera de Alban Berg, justificado pelo relevo que lhe é dado na correspondência entre Adorno e Benjamin, remete para aspetos do “legado intelectual” de ambos que têm a sua contraparte “negativa” no capítulo do livro intitulado “Um dialético legado intelectual”, em que a autora, finalizando o seu ensaio, discute questões da mais candente atualidade, como são o Kitsch (sucedâneo distópico da arte) e o “empobrecimento da experiência”, a relação entre “meios de produção cultural e modos de reprodução social”, ou “popularidade e totalitarismo: duas faces da cultura massificada”.
Em tese geral, conclui-se que o legado teórico de Adorno e Benjamin é inseparável da amizade entre ambos, uma amizade que, no plano intelectual, se traduziu na mediação recíproca dos respetivos ângulos de abordagem, ou, por outras palavras, numa complementaridade dialética que certamente muito contribui para o manter vivo e dinâmico, sem cessar renovado no seu potencial crítico.
Musicólogo e Autor Português