Por Martha Guedes
Desliza o lápis sobre a folha do caderno em movimento ascendente. Sem parar, faz a trajetória ora vertical ora horizontal, descrevendo pequenas elevações. Mais um pouco, depois de um percurso menor e quase retilíneo, desce suavemente até parar no mesmo plano por onde começou. Qual menino ou menina não fez este desenho? Somente quem não contemplou a linda Serra do Orobó.
A imagem está gravada na memória. A serra, em cujo sopé se estende a cidade, preside com altivez não arrogante à paisagem. Preside à vida e à morte.
A pequena vila de Santo Antônio dos Viajantes do Orobó Grande se aninhou a seus pés, cresceu, mudou de nome e pretensões até tornar-se em cidade. Os que nascem Ruy Barbosa _ em honra do notável jurista assim foi a antiga vila renomeada _ à serra dedicam amor filial, todavia não isento de descuido. Destituída da vegetação exuberante que lhe encobria os pés e das águas correntes, cristalinas, que branqueavam os lençóis e amenizavam os rigores do verão, a triste mãe resiste com dignidade às investidas desrespeitosas. Contempla, solene, a cidade que cresce, avançando sobre seus pés quase desnudos.
No passado, velou a serra pelos Orobós, tapuias que não cederam pacificamente às investidas do colonizador. Nem mesmo os jesuítas conseguiram amansá-los, pois se mantiveram indispostos a cultivar a terra cujo mel, em açúcar transformado, não lhes poderia a boca adoçar. Contrários aos Maracás, que negociavam com o colonizador, lutaram bravamente. Em vão. Alguns foram levados aos engenhos do Recôncavo. Escravizados, cultivaram a terra. Dos que não foram aprisionados, pouca informação há. Dissiparam-se, talvez, em meio à névoa que encobria a Mãe-Serra enlutada.
“Tão velha como a serra!”
Dizem que a serra é muito, muito velha. Acredito piamente. Não é preciso ter conhecimento profundo de geologia para atribuir a ela tamanha ancestralidade. O que mais poderia deixá-la tão sinuosa, de contornos tão suaves senão a ação contínua do vento? Ao longo de várias eras, como um artesão cuidadoso, o vento constante eliminou os excessos bruscos, certamente deixados por abalos sísmicos e furacões. Sem dúvida, a serra é mais antiga que as formações rochosas de toda a Chapada Diamantina _ afirmo aos meus botões. Não por servilismo ela está ao “piemonte” da chapada, mas por antiguidade de posto, por notória experiência eólica e tectônica.
A antiguidade da serra foi sempre o parâmetro utilizado ao tratar da possível idade de alguém, em comentários maliciosos de longas tardes de ócio, preenchidas unicamente pelo vívido esforço em esmiuçar a vida alheia. Não fiquei imune ao veneno. Acrescentavam-me sempre uns cinco anos, pelo menos, à revelia do que atestasse a certidão de nascimento, hoje inteiramente devorada pelas traças.
Há quase vinte anos, não contemplo a minha serra. Eu a vejo em sonho, em noites de vigília, quando o espírito me reconduz ao quintal da casa paterna, de onde apreendia, um tanto oculto pelo mamoeiro da casa vizinha, apenas o topo. Revivo a emoção que me causou a proximidade maior da serra. Estava no sítio de Vovó Chiquinha, nas Flores. Era de manhã, bem cedo. Como que surgida do quintal, a vertente da serra parecia uma enorme parede recoberta pela vegetação de um verde escuro e úmido, circundada pela névoa. Tive medo. Em nada lembrava o desenho do meu caderno. A face avistada causava terror. Lá fora, ecoou o apito do trem. Vovó Chiquinha recolheu alguns beijus da casa de farinha e tomamos o café-da-manhã. O trem partiu, o medo arrefeceu, mas o lado oculto da serra se manteve como um segredo, não comunicado ao caderno. Nem ao lápis foi permitido revelar.
“Desenho” é um termo que essencialmente se relaciona à ideia de “desígnio”. Estes termos, que têm a mesma origem, significam o ato divino de criar como uma projeção do mundo ideal, imaterial, cuja ordem só pode ser reproduzida se respeitadas as leis imutáveis que determinam a existência do cosmo e nele contidas, apreensíveis em especial pela geometria. Busque-se na Antiguidade clássica, no pensamento grego, a explicação devida. Desenhar é designar, portanto, à semelhança da ação do criador divino, reproduzir a ordem cósmica. Desenho na mente a Serra do Orobó em concordância com a ordem universal. O lápis imaginário reproduz o contorno suave da elevação que se espraia nas colinas em cordilheira, até nivelar-se ao plano térreo. Tento converter em figuras geométricas esse desenho mental. Sem afinidade com as matemáticas, arrisco-me a adentrar um terreno indeterminado ao reproduzir o lado obscuro da serra. Que permaneça sob a névoa do sítio distante!
Será que completei a obra? Acho que sim. Hum… Espere, por favor. Falta acrescentar o cruzeiro à elevação dominante do topo. Pronto. Criado está.