Por Elieser César
Começo com a lenda, descrita por Anton Tchekhov (1860-1904): Há um milênio um misterioso monge, vestido de negro, costumava aparecer em diferentes regiões do mundo como uma miragem. Os mais crédulos acreditavam que o misterioso sacerdote voltaria a aparecer saído de uma nuvem a cada mil anos.
O magíster Andrei Vassilievitch Kovrin, que quase não dormia para se dedicar aos estudos e à busca incessante do conhecimento, era uma dessas personalidades místicas. Além disso tinha mania de grandeza e se julgava um homem superior, destinado à glória dos poucos eleitos. Os amigos alimentavam-lhe a vaidade.
Até que ele sofre “um esgotamento que arruinou seus nervos”, como é revelado na abertura dessa novela do contista e dramaturgo russo.
Krovin resolve descansar na casa de campo da diligente Tânia Pessotski, filha do conhecido horticultor Pessotski. O pomar é o orgulho de pai e filha.
Desde a infância, Tânia parecia destinada a Kovrin. Não demora e o casamento termina acontecendo.
Tudo vai bem, até o magister começa a ter alucinações com o Monge Negro, que pensa estar sentado ao seu lado.
Tânia estranha a mania do marido conversar sozinho numa excitação nervosa e incompreensível. Logo suspeita de que ele estava enlouquecendo.
Até o Monge Negro contribuiu para que Kovrin, como sua vontade de potência como diria Nietzsche, aspirasse “a algo mais vasto, infinito, assombroso”.
Porém o que vem mesmo é o assombro. O jovem intelectual tem uma crise nervosa.
E deixa a carinhosa esposa e o sogro bondoso tratar de seus nervos. Durante o tratamento, o pobre homem parece melhorar mas volta a ver o Monge Negro. Produto de uma imaginação superexcitada?
Então chega à conclusão que vai apressar a sua perdição:
“– E quem disse que os homens de gênio, respeitados pelo mundo inteiro, não tiveram visões? Diz a ciência de hoje que o gênio está muito próximo da loucura. Creiam-me, as pessoas saudáveis e normais são vulgares: o rebanho. O medo do esgotamento nervoso, da super exaustão e da degenerescência só pode perturbar seriamente aqueles cujos objetivos na na vida se encontram no presente: eis o rebanho.”
E logo depois: “Repito: se quer saudável e normal, marche com o rebanho”.
A GRANDEZA DA MORTE
Adiante, Krovin vai se revoltar contra o tratamento e passa a ser cruel com a esposa e o sogro:
“– Porque…porque vocês me curaram? Poções de brometo, ociosidade, banhos quentes, vigilância, um terror idiota a cada garfada, a cada passo…tudo isso vai acabar fazendo de mim um idiota. Fiquei transtornado da cabeça, deu-me mania de grandeza, mas com isso tudo eu era jovial, ativo e até mesmo feliz, era interessante e original..Agora me tornei racional e sólido, mas igual a todo mundo: sou uma mediocridade, para mim é difícil viver. Ah, como vocês foram cruéis comigo! Eu tinha alucinações, mas a quem isso fazia mal? Pergunto: a quem fazia mal?”.
A partir daí a vida familiar vira um inferno. O velho Pessotski morre de desgosto. Tânia abandona e amaldiçoa o marido.
Encerro com a bela descrição da morte de Tchekhov, feita pela esposa do escritor e reproduzida por Fernando Sabino no prefácio para a Coleção Novelas Imortais, da Rocco:
“Sentou-se na cama e, de maneira significativa, disse, em voz alta e em alemão: ‘Ich sterbe!’ – estou morrendo. Depois segurou o copo, voltou-se para mim, sobrou com seu maravilhoso sorriso e disse: ‘Faz tempo que não bebo champanhe.’ Bebeu tranquilamente todo o copo, estendeu-se em silêncio e, alguns depois, calou-se para sempre. E a pavorosa calma da noite foi apenas alterada por uma enorme borboleta noturna, que entrou pela janela e voou, atordoada, pelo quarto, em torno das lâmpadas acesas. O médico retirou-se. No silêncio da noite, com um estampido terrível, a rolha da garrafa interminada saltou. Começou a clarear e, com a natureza a despertar, um primeiro réquiem: os doces e formosos cantos das aves e os acordes do órgão na igreja próxima. Nem uma voz humana, nada do cotidiano da vida, somente a calma e a grandeza da morte.”.
Anton Tchekhov, aos 44 anos, fora se encontrar com o monge negro da morte.
—————————————————–
Jornalista e escritor