UM ARTISTA, FÁBIO MAGALHÃES, EM TRÊS MOSTRASE DOIS ESPAÇOS

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Por Cláudius Portugal
Fábio Magalhães ocupa desde o dia 30 de julho (até 31 de agosto), numa realização da Paulo Darzé Galeria, três mostras, em dois espaços.  O ÉDEN PAGÃO, fotografias e pinturas à óleo, com curadoria de Alejandra Muñoz; GUERRA DO SOLDADO SEM RAZÃO, composta por 17 obras, entre pinturas a óleo e esculturas, com curadoria de Thais Darzé. Ambas no Museu de Arte da Bahia. E TRILHA DOS OSSOS, instalações e objetos, com curadoria de Tereza de Arruda, na Paulo Darzé Galeria.

O ARTISTA DIANTE DE SUAS OBRAS

TRILHA DOS OSSOS ATO I: O passado indelével – ONDE O PASSADO NÃO PODE PERMANECER SOTERRADO. Ossos emergem de um passado colonial profundo, brotam da terra e rasgam aquilo que parece sufocar vozes silenciadas; como se não fosse mais possível ocultá-las, pois não é mais possível emparedar os corpos. Agora, como uma espécie de acerto de contas póstumo, o indelével define o compasso na obra, a qual apresenta sete recortes de pavimentação com padrões geométricos de pedras portuguesas, medindo 70 x 70 cm cada. Esses padrões se tornaram herança colonial em nossas ruas e praças, como um “sinal de progresso”. Contudo, a obra é formada por um conjunto de peças que forma um grande calçadão de lembranças, em que o passado não pode mais ser soterrado, ocultado ou silenciado.

O decorrer das horas, das épocas, dos séculos é uma constante na vida humana. Desde os primórdios da civilização até os dias atuais, enfrentamos a inevitabilidade das mudanças ao longo do tempo. Rumores apontam que estamos chegando ao fim do antropocentrismo, fala-se em fechamentos de ciclos, nota-se uma reorganização nas configurações globais, somada às reestruturações culturais que apontam novos modos de consciência. Nessa perspectiva, o tempo é visto como dimensão fundamental da experiência humana. Assim, a mostra TRILHA DOS OSSOS tenta compreender e lidar com a realidade inevitável que traz consigo inúmeros desafios e adaptações.

A exposição foi concebida numa trindade de tempos: o primeiro ato, “O passado indelével”; o segundo ato, “O caos do agora”; e, por fim, o terceiro ato, “O amanhã distante”. Para o ato I, escolho trabalhar com a condição humana diante dos erros indeléveis do passado, uma tarefa complexa e necessária. Ao longo de nossa história, a humanidade cometeu inúmeros erros; contudo, temos a capacidade de aprender com eles e superar o negacionismo histórico, processo fundamental para a construção de um futuro com mais equidade. Já o ato II surge da efervescência dos acontecimentos no “caos do agora”. O presente, dinâmico e instável, é puro devir que nos exige adaptações urgentes. As mudanças sociais e tecnológicas que ocorrem em ritmo acelerado trazem consigo desafios e oportunidades. É necessário estarmos atentos e preparados para enfrentá-los. O ato III, “O amanhã distante”, propõe pensarmos entre as utopias e distopias de um futuro incerto, além de provocar a reflexão sobre o peso de nossa própria existência, em que somos levados a imaginar e criar soluções para os desafios do presente, vislumbrando novos modos de consciência.

A cada dia que entro no meu espaço de produção artística, reafirma-se em mim que a Arte nos dá a capacidade de imaginar e interagir criticamente com o mundo em que vivemos; isso exige constantes reflexões sobre os valores, hábitos e escolhas que norteiam nosso cotidiano. As escolhas que fiz para a criação da mostra Trilha dos ossos contribuem para uma reflexão sobre o tempo enquanto uma constante entre nós e sobre a complexidade da condição humana diante do devir. Penso que ajuda a compreender a nós mesmos, o mundo que nos cerca, e a traçar novos caminhos para uma existência mais plena.

Berço civilizatório

A instalação “Berço civilizatório” é composta por um ninho de pelúcia negra cujo interior abriga um amontoado de crânios humanos e delicadas estatuetas de anjinhos barrocos, que parecem repousar em harmonia. Assim, a cena de ingenuidade e horror ganha nova materialidade. Dessa maneira, o antagonismo simbólico, que permeia a obra de ironias e reflexões sobre os diversos tipos de domínios sociais e culturais, leva-nos a refletir, por exemplo, sobre como a educação religiosa jesuíta foi usada como pretexto para o extermínio dos nossos povos originários.

Destilador de almas

Uma ninhada de ovos negros se apresenta diante de nossos olhos. A instalação “Destilador de almas” deflagra reflexões sobre o massacre cultural sofrido por povos nativos. As peças da instalação são como embriões culturais de nações que foram violentamente abertos, ovos/ úteros rasgados, uma barbárie da ordem do prematuro. Séculos de práticas violentas contra essas populações são evocados nesta obra, na qual os ovos se transfiguram e assumem o simbolismo de urnas fúnebres, rememorando o genocídio sofrido por nossos povos originários.

Existir é também memória

Esta obra faz alusão a um passado recente, pois questiona sobre as vidas desaparecidas durante a ditadura militar de 1964 no Brasil. Com o título “Existir é também memória”, este trabalho apresenta uma ideia que pode parecer paradoxal ou contraditória, pois a memória é um aspecto fundamental da existência, ou seja, para que algo exista é necessário que haja um registro ou lembrança de momentos do passado. Contudo, sabemos dos desaparecimentos por ações políticas, sem registros, sem memórias. Nesse sentido, nas três peças que compõem esta obra, mesmo sob as frestas do desencanto “existências” aparecem como memórias de que devemos permanecer, persistir.

Fábio Magalhães

O ÉDEN PAGÃO

A sexualidade humana corre seu curso numa jornada complexa e extensa, marcada por mudanças culturais, religiosas e sociais ao longo dos séculos. Na Antiguidade, o desejo era visto como uma forma de celebrar a vida e a fertilidade; já na Idade Média, a sexualidade foi represada e moralmente condenada por dogmas religiosos, levando a uma série de conflitos e culpas, passando de uma sexualidade livre a uma sexualidade inibida, reprimida. Surpreendentemente, vivenciamos uma atualidade que ainda esbarra em conflitos capazes de inibir os modos de manifestação da sexualidade, pois encontramos o julgo de valores reeditados e manifestos.

Envolto por essas reflexões, criei um conjunto de 14 fotografias e 4 “objetos instalativos” que compõem a mostra O ÉDEN PAGÃO. Os resultados emergem de reflexões sobre as experiências humanas puramente carnais e vitais, numa relação íntima e imediata de ser e estar no mundo. Nesse sentido, as obras foram construídas em pelúcia, como bichos anômalos com chifres, patas e rabos para povoar esse jardim das delícias. Eles fazem alusão ao instinto animalesco que adormece em nós; muitas vezes, velados ou inibidos por tabus sociais, mas aqui essa sexualidade parece ser exposta sem repressões, livre. É importante destacar que a pelúcia se apresenta na série como elemento de sugestão tátil à sensibilidade de afetos, afagos e carícias do profundamente íntimo.

Nas imagens e objetos produzidos com os bichos de pelúcia, recheados de páginas de livros de contos eróticos, proponho discutir sobre a força instintiva que impulsiona em direção ao prazer e à realização plena. Neste jardim pagão, atrações, seduções e todo tipo de excitação estão à mostra, uma imanência do cio em que se dispensam os fins da natividade por puro deleite hedonista; uma luxúria inebriante, uma força que nos leva a explorar nossa própria natureza libidinosa. Para a construção dos bichos que compõem as cenas fotografadas e “objetos instalativos”, foi realizado um vasto levantamento de poemas eróticos ou aqueles que exaltam o amor, imagens pornográficas e obras literárias de vários períodos da história.

 Assim, fiz uso de textos controversos, do Cântico dos Cânticos a Calígula, dos sonetos de Camões a Lolita, de Vladimir Nabokov, além de obras tais como Tristão e Isolda; Romeu e Julieta; alguns contos do Decameron; o Kama Sutra; O teatro de Sabbath, de Philip Roth; Os 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade; Trópico de Câncer, de Henry Miller; A casa dos budas ditosos, de João Ubaldo Ribeiro; Delta de Vênus, de Anaïs Nin; O banquete, de Platão; O amante de Lady Chatterley, de D. H. Lawrence; História do olho, de Georges Bataille; A história de O, de Anne Desclos; A Vênus das peles, de Sacher-Masoch; entre muitas outras.

Como numa espécie de ritual profano, para atender aos artifícios da própria natureza da arte, todas as páginas deste inventário libidinoso foram usadas como enchimentos dos bichos eróticos, algumas vezes fechados, outras abertos, como um modo de dissecar e expor seus desejos mais íntimos. Com isso, propus dar-lhes um âmago lascivo; uma pulsão de Eros; um sopro de vida, não divino, mas inerentemente humano, tentando gerar uma “aura de libido” que emanasse de cada composição fotográfica e dos objetos. Longe de ser uma exaltação à vulgaridade ou uma exibição gratuita da nudez, a mostra O ÉDEN PAGÃO propõe um arcabouço de questionamentos contra a moralidade, o conservadorismo e os tabus, nos quais ainda estamos socialmente imersos e aos quais nos vemos sujeitados. É fato que as normas sociais e os valores culturais podem moldar nossa compreensão e expressão do que somos. Portanto, é preciso considerar que os múltiplos entendimentos e perspectivas oriundas das forças sociais, culturais e políticas podem afetar a sexualidade e, por sua vez, a natureza humana. Só assim, a partir de uma reflexão crítica sobre essas forças, poderemos ter uma compreensão mais profunda e humana deste fenômeno tão fundamental para a nossa vida: os desejos.

Fábio Magalhães

GUERRA DO SOLDADO SEM RAZÃO

Houve alguma época duradoura na história em que a vida decorresse pacificamente entre os homens? Os rumos do início deste século demonstram que a terrível realidade dos conflitos segue entre nós, eles assumem novas táticas e formas de existir. Contudo, a essência permanece, o mesmo confronto organizado que almeja a destruição, que coloca em lados opostos seres humanos com os mesmos anseios e valores. Isso nos leva a outra questão: seria a guerra uma condição intrínseca do ímpeto humano? Para o bem ou para o mal, para fins nobres ou desprezíveis, o fato é que a guerra é uma criação humana, e podemos ligá-la à nossa suposta natureza de destruir, corromper, agir com violência diante da não aceitação do outro e do que é diferente de nós. Das pulsões provocadas pelas ações do poder sobre o humano, a exposição GUERRA DO SOLDADO SEM RAZÃO é composta por 17 obras, entre pinturas a óleo e esculturas.

Nela proponho discutir as condições psíquicas às quais somos sujeitados em vários momentos de nossa existência. Assim, essa mostra instaura um jogo entre os significados do poder, estabelecidos pelas hierarquias e pelo Ser. Nas obras que compõem a série, crio a partir de um repertório lúdico, em que escolho elementos que atravessam a inocência e introjetam o desejo de destruição. Vidas humanas tornam-se brinquedos nas mãos daqueles que são considerados senhores da guerra. Nas telas, soldadinhos vagam numa espécie de limbo branco, num combate em que não se vê ou sequer se sabe quem são os inimigos. Imersos em trincheiras em carne viva, esses relevos se revelam na própria natureza da pintura. Abrem-se veias, fraturas e delírios, o sangue parece não estancar, o caos congela perante nossos olhos, confinado em cores entranhadas nas pinturas. Aqui a perda da razão se instala, a pulsão de ódio se eleva e coloca o indivíduo em situações degradantes, obrigando-o a matar ou morrer, algo que, a princípio, não deseja fazer. A guerra destrói preciosos valores materiais, produtos do trabalho humano, seguindo a sanha extrema na completa aniquilação de todas as coisas e do outro.

O conjunto de esculturas da série evidencia como o autoritarismo e as forças opressoras exercem um impacto profundo sobre o sujeito e suas subjetividades. Quando um sistema autoritário prevalece, as liberdades individuais são restringidas e a autonomia é suprimida. O sujeito encontra-se refém de vontades e imposições de um poder dominante, que busca controlar e moldar sua identidade e seu pensamento, transformando-o em um soldado/marionete aparelhado para dizer sim. Desse modo, as obras são carregadas de ironias e suscitam no observador reflexão e reconhecimento da própria subjetividade, além da luta pela sua autonomia, em que o indivíduo pode contribuir para a transformação social e para a construção de um mundo onde todas as pessoas sejam valorizadas em sua plena consciência de humanidade.

Neste momento, todas as questões se colocam em suspensão, pois é difícil não pensar em um futuro pessimista para a relação entre a humanidade e as guerras. Neste cenário em que a natureza humana e o medo imperam, as desilusões nos atormentam. A guerra parece tornar-se algo inevitável, mas temos os meios de combater nossas contradições e desigualdades, basta percebermos que temos em nossas mãos a escolha entre o que somos e o que poderemos nos tornar. É preciso estar atento aos desvios da história, atualmente tão conturbada pelo distanciamento do que nos torna humanos.

Fábio Magalhães

FÁBIO MAGALHÃES nasceu em Tanque Novo/BA, 1982 e vive e trabalha em Salvador/BA. Constrói sua poética a partir de investigações relacionadas às condições humanas, pontos de partida para a criação de metáforas visuais em imagens, objetos e instalações. Seu pensamento artístico está sempre em contato com a pintura, mesmo ao produzir trabalhos tridimensionais. A obra de Fábio causa fascínio e repulsa, jamais indiferença, sendo resultado de um complexo processo de concepção e efetivação até chegar ao produto. O artista elabora encenações meticulosamente planejadas, capazes de ampliar os limites da percepção e gerir inquietações sobre a realidade. Por meio de um conjunto de operações conceituais, históricas e processuais da arte, Fábio desafia o habitual em busca de iluminar uma consciência adormecida no humano.

Ao longo de sua carreira, o artista realizou uma série de exposições individuais, a primeira delas em 2008, na Galeria de Arte da Aliança Francesa, em Salvador (BA). A essa mostra inicial, seguiram-se as individuais Jogos de significados, 2009 (Galeria do Conselho, Salvador/BA); O grande corpo, 2011, Prêmio Matilde Mattos/FUNCEB (Galeria do Conselho, Salvador/BA); Retratos íntimos, 2013 (Galeria Laura Marsiaj, Rio de Janeiro/RJ); Além do visível, aquém do intangível, 2016, curadoria de Alejandra Muñoz (Museu de Arte da Bahia, Salvador/BA), que realizou itinerância na Caixa Cultural de São Paulo (2017) e de Brasília (2018); e Espectador da vida, 2019, curadoria de Thais Darzé (Paulo Darzé Galeria, Salvador/BA).

Em 2010, obteve o Prêmio Aquisição e o Prêmio Júri Popular no I Salão Semear de Arte Contemporânea (Aracaju/SE) e o Prêmio Fundação Cultural do Estado (Vitória da Conquista/BA). Em 2011, recebeu o Prêmio FUNARTE Arte Contemporânea/Sala Nordeste. Foi selecionado para o Rumos Itaú Cultural 2011/2013. Em 2015, foi indicado ao Prêmio PIPA (MAM, Rio de Janeiro/RJ). Sua obra também integrou exposições coletivas, entre as quais destacam-se o XV Salão da Bahia, 2008 (MAM, Salvador/BA); o 60º Salão de Abril, 2009 (Fortaleza/CE); o 63º Salão Paranaense, 2009 (Curitiba/PR); Convite à viagem – Rumos Artes Visuais 2011/2013, 2012 (Itaú Cultural, São Paulo/SP), curadoria de Agnaldo Farias; O fio do abismo – Rumos Artes Visuais, 2011/2013, 2012 (Belém/PA), curadoria de Gabriela Motta; Territórios, 2012 (Sala FUNARTE/ Nordeste, Recife/PE), curadoria de Bitu Cassundé; e Espelho refletido, 2012 (Centro Cultural Hélio Oiticica, Rio de Janeiro/RJ), curadoria de Marcus Lontra. Em 2013, participou da mostra Crê em fantasmas: territórios da pintura contemporânea (Caixa Cultural, Brasília/DF), curadoria de Marcelo Campos. Participou ainda da coletiva Contraponto – Coleção Sérgio Carvalho, 2017 (Museu Nacional de Brasília/DF) e de 50 anos de realismo: do fotorrealismo à realidade virtual, 2018-2019, exposição itinerante curadoria por Tereza de Arruda (Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo/SP, Brasília/DF e Rio de Janeiro/RJ).

CURADORIAS

Tereza de Arruda – CURADORA DA MOSTRA TRILHA DOS OSSOS

TRILHA DOS OASSOS, de Fábio Magalhães, apresentada na Paulo Darzé Galeria, traz parte de sua produção artística dos últimos dois anos. Ela é composta por uma trilogia demarcada por início, meio e fim, visualizando uma cronologia existencial em três atos: “O passado indelével”, “O caos do agora” e, por fim, “O amanhã distante”. Tem-se aí uma análise de questões atuais, sustentadas por alicerces do passado irreversível e do futuro um tanto quanto imprevisível.

A perspectiva de Fábio Magalhães é construída a partir de sua vivência pessoal e do contexto que o norteia, tendo as relações humanas, as condições psíquicas e o imaginário pessoal como pontos de partida de sua investigação. Seu foco, contudo, se distancia claramente dos parâmetros convencionais do antropocentrismo, que coloca os seres humanos no centro do universo de forma soberana. Hoje, a reavaliação crítica dessa perspectiva – presente na representatividade de Fábio Magalhães – é essencial para enfrentarmos os desafios contemporâneos, diante das crises ambientais, políticas, éticas e sociais. A transição para uma visão mais holística e inclusiva, que reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos, e a sua interdependência, é crucial para uma mudança de paradigma a caminho de uma sociedade mais equitativa.

Em uma narrativa sócio-político-cultural, nota-se na produção atual de Fábio Magalhães como a era da pós-globalização – políticas mais focadas na autonomia e na autossuficiência nacional – pode influenciar, mas sem necessariamente eliminar, a relevância e a urgência de abordar temas globais – desafios persistentes que afetam toda a humanidade –, tendo que assumir medidas colaborativas e multilaterais, como tratados internacionais, em busca de soluções mundiais. Segundo o artista: “A cada dia que entro no meu espaço de produção artística, reafirma-se em mim que a Arte nos dá a capacidade de imaginar e interagir criticamente com o mundo em que vivemos; isso exige constantes reflexões sobre os valores, hábitos e escolhas que norteiam nosso cotidiano “…

Alejandra Muñoz – CURADORA DA MOSTRA O ÉDEN PAGÃO

A ideia de Éden remete a um contexto paradisíaco, em que o hedonismo emana do convívio pacífico, a tranquilidade emerge do controle dos imprevistos e a harmonia decorre de comportamentos domesticados. Concupiscência, lascívia, animalidade, cio, paixão e libertinagem não fazem parte da gramática tradicional de qualquer Éden religioso. Todavia, a adjetivação “pagão” engloba toda e qualquer dimensão não cristã. Então, é possível um Éden às avessas se pensar necessariamente o inferno como oposição categórica? Qual seria o lugar para a violência das pulsões humanas sem conotação de pecado? Esta exposição é uma instância de tensionamento entre uma ideia de paraíso terrenal idílico e a inesquivável realidade da nossa natureza humana, frequentemente cerceada pela moral religiosa.

A arte de Fábio Magalhães nos oferece um local de perfeita felicidade, um Éden coerente com todo nosso arcabouço de virtudes e defeitos enquanto humanos. Sem juízo moral, sem lógica de punição, sem alternativa de redenção pelos nossos desejos reprimidos. As fisionomias das criaturas desse Éden passivamente atiçam os impulsos energéticos internos que direcionam nossos comportamentos preestabelecidos. E por que não? De modo metafórico, a exposição reivindica o direito às nossas pulsões, e não um justiçamento dos instintos. A retórica fetichista da maioria das peças nos impele a um retorno à animalidade supostamente perdida no processo dito civilizatório…

A retórica dos opostos que atravessa as obras não instaura necessariamente uma equação entre contrários. Desde muito antes do espargimento da teoria queer, sabemos que falos e vulvas são órgãos que não definem gêneros comportamentais masculinos e femininos. Então, as identidades biológicas e o binarismo heteronormativo são empurrados aqui para o limbo das imprecisões. Os trípticos constituem bons exercícios de ambiguidade das potencialidades eróticas combinatórias confrontadas com as interdições do desejo reprimido. Em algumas peças, os valores morais contraditórios dos pequenos corpos peludos e suas possibilidades hedonistas beiram a injúria imagética.

Thais Darzé – CURADORA DA MOSTRA A GUERRA DOS SOLDADOS SEM RAZÃO 

…  Um gatilho emocional é uma situação que “dispara um trauma” em um indivíduo, entendendo que nossos processos mentais acontecem de forma encadeada, ou seja, nenhum pensamento, sentido, ou lembrança, acontece isoladamente, ou por acaso, e, tampouco, surgem do nada. Ainda que algumas sensações aparentem certa espontaneidade, existem elos ocultos que conectam esses eventos mentais a outros anteriores, em uma sequência contínua de pensamentos e emoções. 

O mesmo ocorre com o corpo da obra de Magalhães. Em seus trabalhos é possível observar a construção de um realismo ficcional a partir de pulsões das condições psíquicas, em uma estrutura conceitual arquitetada pelo artista ao longo dos anos, em diálogo com sua pesquisa plástico-visual. Contudo, apesar dessa pesquisa cuidadosa, o artista afirma que “minha arte não é uma ilustração de teoria, e nem deve ser; a teoria é apenas a semente fértil”.

No conjunto de pinturas e esculturas de A GUERRA DOS SOLDADOS SEM RAZÃO, o artista utiliza o brinquedo para representar o soldado, tencionando os conceitos de diversão, infância, violência, poder e morte. Os limites entre violência e infância são encurtados, deflagrando contornos sociais, de modo a definir quem pode brincar e viver, em oposição àqueles a quem essas ações são negadas. Também nos damos conta de que vivemos em um mundo que cultua a guerra e a violência, onde elementos bélicos são associados à diversão e à infância numa perspectiva histórica, em que a inocência não é permitida. O artista, ao resgatar brinquedos da própria infância, reaviva memórias lúdicas que ultrapassam as barreiras da brincadeira para tocar nas duras realidades da vida, criando um verniz imagético para suas obras. 

A produção de Magalhães não opera por meio de mudanças bruscas ou grandes rupturas. Seu vocabulário imagético e o substrato conceitual de sua pesquisa preservam as estruturas desde as criações inaugurais do artista. Suas obras nascem de metáforas sobre as condições psíquicas humanas. Não permanecem na superfície. Nelas, diversas camadas da subjetividade do ser vão se sobrepondo até as profundezas das condições humanas, onde temporalidade e espacialidade são completamente ausentes. O cenário e o contexto histórico se localizam na superfície, enquanto o alicerce se encontra nas pulsões — nesse caso, na pulsão de morte…

A GUERRA DOS SOLDADOS SEM RAZÃO nos leva a refletir sobre como a pulsão de vida e a pulsão de morte são interdependentes e precisam coexistir no ser para que se tenha uma vida em equilíbrio. Um indivíduo que tem apenas a pulsão de vida em funcionamento seria um indivíduo saudável? O excesso de libido certamente o levaria a uma disfunção. Portanto, é preciso compreender vida e morte como energias complementares e inseparáveis no ato de existir.