Vazios Fragmentados

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Por Alcione Bastos

O ano vai se despedindo de nós e o que fica são fragmentos de momentos que retemos na memória. Pedaços soltos de acontecimentos, uma desilusão sofrida, a decepção com alguém na qual apostamos nossas fichas, algumas perdas. Fica também a lembrança de um encontro casual com alguém inesperado, ou alguém do passado, de uma notícia boa, acontecimentos de uma viagem, lembranças de um beijo, uma carícia especial, um elogio.

Nunca conseguimos capturar e reter na memória as vinte e quatro horas de um dia inteiro. A maioria deles nem sequer conseguimos lembrar que existiram. São os dias triviais. Poucos são os dias excepcionais

Se eu pedisse aleatoriamente para você recordar, por exemplo, o dia 23 de março, ou 19 de julho, ou ainda 04 de novembro, provavelmente apenas aqueles que tiveram um evento especial em alguma dessas datas, iriam conseguir recordar. Para os demais, não passaria de um dia qualquer no calendário. Pequenos eventos diários como esquecer a chave do carro e ter que voltar, ter uma dor de barriga e até perder um compromisso, só são importantes no momento em que acontecem, a menos que deixem alguma sequela.

Durante a Pandemia reduzimos os encontros presenciais a pequenos núcleos de amigos e familiares e mesmo após a reabertura do lockdown, nossos encontros presenciais foram ficando cada vez mais raros. Juntemos a esse fenômeno, um outro que vem crescendo de forma exponencial que é o meio digital. Falamos através de mensagens com centenas de pessoas que estão em qualquer lugar do mundo, em poucos segundos e até ao mesmo tempo, mas estamos sós. Com nossos pensamentos, nossos sentimentos e nossas opiniões. O isolamento nos torna ensimesmados já que não trocamos ideias com as pessoas.

Apesar do excesso de informações, muito pouco comentamos sobre o que lemos, assistimos ou ouvimos e quando comentamos, raramente acompanhamos  a repercussão do nosso comentário. Poluídos pelo excesso de informação, precisamos deletar grande parte dela, visto que não conseguimos retê-la. O que fica são novamente alguns fragmentos. Recortes de notícias, um caleidoscópio de assuntos que a cada movimento dos dedos vai mudando e gerando novas imagens e novos assuntos. Às vezes um ou outro viraliza e todos passam a comentar sobre esse ou aquele personagem, certo tipo de síndrome ou transtorno mental que logo mais, dará lugar a uma outra que estiver dando mais ibope.

Onde tem uma mesa com duas ou mais pessoas, tem também celulares nas mãos. Volta e meia eles ficam descansando sobre a mesa, mas a maior parte do tempo, estão competindo com a conversa que não flui como poderia, construindo vazios e silêncios que vão se acumulando ocupando o lugar dos afetos compartilhados.

Até o nosso amigo oculto deixou de ser personalizado com os nomes dos participantes. Ele passou a ser um número que será sorteado de forma aleatória. O presente é unisex, para que possa ser facilmente passado de mão em mão quando roubado. É o amigo ladrão. Cada vez mais deixamos os presentes dos amigos, nas portarias dos prédios. Esse ano, deixaram uma sacolinha com um tipo de “brownie” de chocolate, pendurada na maçaneta da nossa porta sem qualquer identificação. Ficamos alguns dias sem saber quem entregou em casa até descobrir que havia sido uma vizinha. O agradecimento foi por whatsapp.

E o ano vai findando trazendo fragmentos das retrospectivas das guerras, tragédias, doenças dos famosos, mudanças de liderança política aqui e ali, músicas e receitas. Ah essas então nem se fala. Já se inventou milhares de métodos de cozimento de alimentos, milhares de tipos de preparos de comidas fitness e outras tantas receitinhas caseiras para tudo o que sua imaginação desejar. Qualquer receita de prato pode ser feita mesmo se a pessoa for desprovida de qualquer talento culinário. Desmistificou-se o mistério dos grandes chefs. Mas experimente rever alguma notícia que achou interessante. Ela simplesmente desaparece num oceano de milhares de outras e o único recurso que você dispõe é “salvar” naquela bandeirinha que fica embaixo e à direita da imagem. E lá estamos novamente fragmentando nosso arquivo de salvamentos.

A IA, (Inteligência Artificial) chegou para desbancar muitos profissionais em diversas áreas do conhecimento. Você pergunta e em poucos segundos, sim, em poucos segundos a resposta está na palma da sua mão. Já experimentou fazer uma pergunta ao chat do GPT?   De agora em diante, quem já tinha dificuldade para ler um livro inteiro, aprender um instrumento musical ou fazer um curso completo, tenderá a piorar.

Com toda essa fragmentação, ficamos repletos de espaços vazios. De olhares não retribuídos, respostas não ditas, abraços não dados, beijos cada vez mais curtos e raros, conversas soltas e triviais. Até nosso vazio está fragmentado. Eles terminam sendo preenchidos por sensações de ansiedade, tristeza, tédio, ciúme, impotência.

Para Zygmunt Bauman, a era da modernidade líquida, em que estamos vivendo, onde tudo é fluido e passageiro, confuso e propenso a mudar de forma muito rápida e imprevisível, é fatal para a nossa capacidade de amar, seja esse amor direcionado ao próximo, ao nosso parceiro ou a nós mesmos.

Que possamos preencher nossos espaços internos com sentimentos que nos recompensem, nos alimentem a alma, nos faça sentir vivos, protagonistas da nossa vida diária, que nos torne mais humanizados e sensíveis e menos fragmentados, automatizados e espectadores.

Feliz 2025 para você, para mim e para todos nós com mais espaços concretos e inteiros para que possamos trocar ideias, olhar nos olhos, abraçar e beijar pessoas reais.
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Médica e Sexóloga – @draalcionebastos