Vladimir Herzog, 50 anos depois (1975-2025)

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Por Gilfrancisco

“Que a memória de Vladimir Herzog faça dessa geração a geração da esperança que renasce todos os dias, e que todas as esperanças em conjunto formem uma corrente irresistível que nos levará a dias melhores”.

                        (Dom Paul Evaristo Arns, Cardeal arcebispo de São Paulo)

Esse artigo, foi publicado originalmente na edição, nº 1177 de 31 de outubro a 6 de novembro de 2005, no Cinform a pedido do Editor Jozailto Lima, com o título de A sangue quente. Em 25 de outubro de 1975, Herzog foi torturado até a morte nos porões da ditadura que assolava o Brasil naquele período. Agora 50 anos depois, hemenageia-se sua memória com uma série de celebrações em São Paulo, além da entrega do Prêmio Vladimir Herzog de jornalismo. A TV Cultura exibirá o documentário inédito “A vida de Vlado – 50 anos do caso Herzog” no dia 25 de outubro às 23 h. O longa metragem estreia na 6ª feira (24.10.25), na 49ª Mostra Internacional de Cinema, às 19 h. na Cinemateca Brasileira, em São Paulo.

Jornalista e professor universitário da USP, Vladimir Herzog, nasceu, na Iugoslávia, atual Croácia em 37, chegando ao Brasil aos 9 anos, com os pais Zigmundo e Zora Herzog fugindo do nazismo que assolava a Europa, se naturalizou brasileiro na década de 40. Começou a carreira de jornalista em 59, em O Estado de São Paulo. Em 65, foi para Londres onde trabalhou como produtor e locutor na BBC.

De volta ao Brasil, trabalhou 5 anos como editor cultural da revista Visão. Em 73 passou a trabalhar como secretário de telejornalismo do jornal “A Hora da Notícia” da TV-Cultura. Em 75, Herzog foi indicado por Fernando Pacheco Jordão, companheiro no curso que fizeram em Londres, para   assumi o cargo de diretor do Departamento.

Segundo Fernando Pacheco, em seu livro O Dossiê Herzog, “pelo menos um mês demorou a formalização de um contrato entre Vlado, assim chamado por amigos e familiares, e a direção da TV Cultura, o tempo que talvez tenha sido gasto nas consultas ao SNI a que se referiu o governador Egydio após a morte do jornalista”. Herzog apresentou à TV Cultura um projeto inteligente e importante, visando a mudança na programação de toda a linha da emissora, cujos pontos básicos Fernando resumiu em seu livro.

Ao assumir o telejornalismo da Cultura, Herzog era o alvo principal de uma campanha de delação promovida pelo jornalista Cláudio Marques.  Foi ele quem denunciou um documentário da agência Visnews, exibido no jornal por coincidência no dia em que Vlado tomou posse, como um filme que “fazia a apologia do Vietcong”.

Na noite de 24 de outubro de 75, depois de fechar o jornal noturno da emissora, Herzog, foi ao prédio do DOI-Codi (Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna) do II Exército, para prestar esclarecimento sobre sua atividade política e sua ligação com o PCB. Foi a última vez que foi visto com vida.

Seu corpo encontrado em uma das celas do temido aparelho repressivo e apresentado à imprensa pendurado em uma grade pelo pescoço por um cinto no dia seguinte (25). Uma incoerência sobre o ocorrido é que a grade era mais baixa que a altura do jornalista. Mesmo assim, a versão oficial era de suicídio. Os laudos periciais do cadáver, exame de corpo de delito e exame de documento (grafológico) constaram como provas nesse IPM. Seu resultado, divulgado a 20 de dezembro, consta de uma tese apoiada pelo IPM, apresentada em 1ª nota oficial do II Exército, constatando que Vlado teria se suicidado com a tira de pano do macacão de prisioneiro que vestia. Mas o médico-legista Harry Shibata admitiu haver assinado em confiança, sem examinar o laudo cadavérico.

A morte de Herzog foi um marco na história da ditadura, que durou de 64 a 85, a partir da qual o regime começou a sentir solavancos em seus alicerces e a dar os primeiros sinais de esgotamento. Anos depois, em 85, o jornalista Paulo Markun ouviu estas palavras do ex-governador Egydio, a respeito do afastamento do comandante Ednardo d’Ávila Melo:

É preciso que se diga: pela primeira vez, em toda a história do Exército brasileiro, um general-comandante foi destituído. O único caso anterior era de um major, não de general de quatro estrelas, durante a Segunda Guerra, na Itália. O ato do presidente Geisel foi um dos mais graves na história do Exército brasileiro: ele destituiu um general-comandante de quatro estrelas. Evidentemente, o general Ednardo pediu a sua passagem para a reserva.

Portanto o fim de Herzog aos 38 anos nas dependências do DOI-Codi foi em decorrência de torturas, como disseram outros presos, que afirmaram ter ouvido os seus gritos. Em 7 de novembro, logo após o assassinato de Herzog, o jornalista Rodolfo Konder, diz que:

 No sábado pela manhã, percebi que Vladimir Herzog tinha chegado. Vladimir Herzog era muito meu amigo, nós comprávamos sapatos juntos, e eu reconheci pelos sapatos. Algum tempo depois, Vladimir foi retirado da sala. Nós continuamos sentados lá no banco, até que veio um dos interrogadores e levou a mim e ao Duque Estrada a uma sala de interrogatório no andar térreo, junto à sala em que nós nos encontrávamos. Vladimir estava lá, sentado numa cadeira, com o capuz enfiado, e já de macacão. Assim que entramos na sala, o interrogador mandou que tirássemos os capuzes, por isso nós vimos que era o Vladimir, e vimos também o interrogador, que era um homem de 33 a 35 anos, com mais ou menos um metro e setenta e cinco de altura, uns 65 quilos, magro mas musculoso, cabelos castanhos claros, olhos castanhos apertados e uma tatuagem de uma âncora na parte interna do antebraço esquerdo, cobrindo praticamente todo o antebraço. 

Quatro dias após sua morte, o SNI, chefiado na época pelo general João Batista de Figueiredo, divulgava uma nota:

Por que não considerar que, uma vez tendo-lhe sido impossível negar sua ação contra o regime democrático, o jornalista não se suicidou consciente de que a agitação nacional e internacional que se seguiria fosse, talvez, o último grande trabalho que prestaria ao partido?

 Nem mesmo a palavra “nota oficial” pôde constar da transmissão desta notícia, na mesma noite, pelo Jornal Nacional para uma audiência ainda chocada com os acontecimentos de São Paulo.

A morte de Herzog provoca grande indignação em São Paulo, principalmente na classe média profissional e na igreja. O cardeal dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo; o reverendo James Wright, pastor presbiteriano; e os rabinos Henry Sobel e Marcelo Ritner celebram no dia 31 de outubro, ato ecumênico na Praça da Sé. Apesar de não haver conflitos, foi um dos mais contundentes protestos contra a ditadura, onde reuniu cerca de 10 mil de pessoas sob intensa vigilância policial, apesar das tentativas de bloqueio ao acesso.

O presidente Ernesto Geisel (1974-1979) ameaçou punir os militares envolvidos no episódio, mesmo assim, meses depois, em 17 de janeiro de 76, em circunstâncias semelhantes, o DOI-Codi fez nova vítima: o metalúrgico Manoel Fiel Filho, morto durante interrogatório. Desta vez, o comandante do II Exército, general Ednardo d’Ávila Melo, foi demitido por Geisel que sofria oposição feroz da linha dura. Nos dois casos, o comando do II Exército divulgou a versão de suicídio, sem convencer a opinião pública.

Tais episódios talvez passassem despercebidos alguns anos antes, mas o fim da censura à imprensa vinha desaparecendo desde o início de 75, anistia aos exilados políticos, a decisiva atuação da Igreja na denúncia dos crimes e a oposição de Geisel contra o prosseguimento das práticas de tortura pelo exército acabaram criando um clima de duplo confronto: da sociedade civil contra o governo e do presidente contra a linha dura representada pelo general Ednardo, responsável pelas mortes. Porém, o principal choque envolvendo Geisel e a linha dura que se opunha à abertura ocorreu quando das primeiras discussões em torno da sucessão presidencial, em 1977.

O fato amplamente divulgado pela imprensa (beneficiada pelo abrandamento da censura desde o início daquele ano), deu início à retomada dos movimentos de contestação que exigiam a redemocratização do país. Esses episódios aceleraram o processo de desgaste da ditadura e provocaram o afastamento dos militares mais radicais – os chamados “linha-dura”.

Os estudantes reconstruíram suas entidades (UNE, UEFs, grêmios), que haviam sido fechadas pela ditadura nos anos 60. Entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil, Comitê Brasileiro pela anistia, Associação Brasileira de Imprensa e Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, tornaram-se cada vez mais atuantes.

Por fim, em outubro de 1978, o Juiz Márcio José de Morais, da 7ª Vara da Justiça Federal de São Paulo, deu ganho de causa à família Herzog, responsabilizando a União pela prisão ilegal, pelas torturas e morte do jornalista, nas dependências do DOI-Codi, no dia 25 de outubro de 1975. O Juiz determinou também que a Justiça Militar apure todas as torturas sofridas por vários jornalistas e que são mencionados nos atos do processo.

Diante de fatos e das provas, o juiz concluiu primeiramente que Herzog estava preso nas dependências do DOI-Codi e faleceu nessas condições. Na sua sentença o juiz concluiu também que o jornalista estava preso ilegalmente, o mesmo acontecendo com outras testemunhas que depuseram no processo, porque nem o IPM (Inquérito Policial Militar), nem no processo, não há sequer menção à existência de inquérito em que Vladimir Herzog tenha sido indiciado, ao mandado de prisão, à autoridade competente que o tenha expedido e mesmo a comunicação da prisão ao juiz competente.

Finalmente, a Justiça admitiu a culpa da União pela morte de Herzog pela primeira vez em 1978. Quase dez anos depois, em 87, foi decidido que haveria uma indenização à família do jornalista, que só foi paga no final da década passada, no governo de Fernando Henrique Cardoso.

Herzog foi sepultado no dia 27, no cemitério Israelita do Butantã. Um detalhe importante foi detectado ao lavarem o corpo (parte do ritual judaico), encontraram sinais de tortura. O enterro aconteceu rapidamente, em respeito à família de Vlado, destacando que todo o ritual judaico foi respeitado. Segundo a tradição israelita, os suicidas são enterrados nos cantos dos cemitérios, uma maneira de recordar do pecado que é retirar a própria vida. Mas o rabino Henry Sobel da Congregação Israelita Paulista, tomou uma decisão que colaborou para a destruição da versão oficial: a de não enterrar Herzog como um suicida. [1] Por isso ele foi enterrado no centro do território sagrado, com as honras de judeu e de brasileiro. Vlado deixou esposa, Clarice Herzog, e dois filhos, André e Ivo. [2]


[1] Henry Sobel (1944-2019), um dos líderes religiosos mais proeminentes da comunidade judaica do Brasil, em 2007 foi detido em um supermercado em Miami, nos EUA, roubando gravatas de grife.

[2] Logo após a morte de Vlado, fui avisado pelo cineasta e professor da UFBA Guido Araújo, que eu fora indicado pelo Partido, para acompanhar Clarice Herzog, durante sua estada em Salvador.

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Jornalista, professor universitário, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, pesquisador dos Grupos: Plena/CNPq/UFS, GPCIR/CNPq/UFS e do CLIC – crítica literária e identidade cultural – UNEB. Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Sergipe –gilfrancisco.santos@gmail.com