Por Alcione Bastos
Ana está planejando aquela noite especial, ela recebeu um convite bastante esperado e vai arranjar um tempinho para se arrumar legal, comprar uma coisinha nova pra usar. Ana agendou o salão de beleza e deixou apenas a depilação para o dia “D”. Como se tratava de um dia de semana, ela teve que dar um “migué” no trabalho. A parte delicada da situação nem será essa, o pior está por vir.
Ana foi à caça de uma lingerie especial. Uma, duas, três lojinhas depois, ela encarou uma preta bem sensual, de renda e seda. Comprada!! Parecia que todos os problemas estariam resolvidos depois que ela estivesse dentro daquelas duas peças. Ledo engano. O que ela não havia programado era a roupitcha que ficaria por cima daquela lingerie. Ela tinha uma ideia a respeito de qual roupa usaria, mas sempre haveria aquela outra que ficaria de coringa caso não gostasse ou surgisse algum imprevisto de última hora. Geralmente há! Pode ser um mísero quilo a mais para te aborrecer ou uma mancha que não havia saído e foi ficando para um dia em que você descobrisse um produto para tirar a tal mancha, enfim, imprevistos não costumam faltar nesses momentos em que uma mulher se arruma para sair.
Ana conseguiu deixar duas opções em cima da cama e depois de banhada, perfumada e maquiada, lá estava ela com suas duas peças de lingerie linda e maravilhosa, se sentindo no poder absoluto, quando de repente, ao experimentar a opção eleita como a número 1, verifica que não havia se lembrado do decote do bendito vestido, quando comprou o soutien e eles decididamente não conseguirão conviver nem por umas míseras horas! As alças e a parte de trás aparecem, tirando toda a beleza do decote. Ela começou a suar e a maquiagem já começa a liberar sinais de alertas em seu cérebro. Mensagens vão chegando no celular: “ Você está pronta? quando estiver me avise”. Mais alertas começam a pipocar e a ansiedade atinge o nível 5, fazendo aumentar o suor e além disso ela tem vontade de ir ao banheiro mais uma vez!
Só resta agora a roupa da opção número dois . Um conjunto de blusa e saia. Ok, não era bem esse que Ana queria, mas vai ser ele mesmo. Puxa o zíper que é daqueles invisíveis e zaz, ele emperra para subir. Ana torce para conseguir porque ele parou naquele ponto mediano em que nem sobe nem desce, ela se deita na cama e respira fundo. Tenta lembrar uma das técnicas de respiração que aprendeu para controlar a ansiedade que agora está no nível 7. Decide não olhar mais as mensagens que continuam a chegar, até porque, não daria para explicar esses perrengues naquele momento. Tenta em vão se acalmar. A ansiedade atinge o nível 8. Desiste, levanta-se da cama e roda a saia para a frente. Desejaria muito que os estilistas consultassem as mulheres antes de colocar todos esses aviamentos fora do alcance dos olhos. Lembra-se que alguém falou em hidratar o zíper com vela, mas a essa altura ela não se lembra onde encontrar uma vela. Pega um óleo demaquilante e passa no zíper, que finalmente fecha! Ufa. Agora que está quase pronta, pega a bolsa e a sandália para calçar e vai responder as mensagens. Manda um áudio e apaga, a voz sai desajeitada demais. “Encontro você lá, tive que resolver um problema aqui em casa e irei de uber”. Digita ela por fim.
Será que os homens não entendem que entre a decisão de sair para uma noite especial e entrar no uber totalmente pronta, existe uma via crucis a ser percorrida. Enquanto Ana, sendo uma mulher feminil, enfrentou todos os perrengues citados, o “boy”, tomou um banho, lavou o cabelo, passou um gel, se perfumou, vestiu sua cueca nova, colocou uma calça jeans e uma blusa preta, um sapatênis e eureca! Estava prontíssimo para sair.
A noite havia sido ótima e na hora da conta, Ana, mostrando que é uma mulher engajada e feminista, fez questão de dividir tudo com sua companhia. Ele sorri satisfeito achando Ana uma mulher linda e liberal.
Balanço geral das contas de ambos:
Ele: Cueca preta da Calvin Klein- 50,00 + combustível 50,00 + ½ da conta 150,00 – Total R$ 250,00.
Ela: Lingerie 150,00 + depilação, manicure e cabeleireiro 200,00 + Uber 50,00 + ½ da conta 150,00 Total: R$ 550,00
Nossa protagonista se sentiu injustiçada mas não disse nada. Mandou esse sentimento para debaixo do tapete e sorriu satisfeita.
Existem contradições entre feminilidades e feminismo que grande parte das mulheres raramente consegue conciliar sem se sentir explorada, culpada, confusa, tola. Os padrões de comportamento exigidos às mulheres, chocam com as quebras de paradigma do feminismo. Nunca foi cobrado nem exigido de um homem, que ele seja bonito e tenha um corpo em forma. O que se espera deles, mesmo hoje em pleno século XXI, é que sejam bons provedores e inteligentes. Assim, negligenciam e não investigam sobre o seu estado mental nem tão pouco se são sensíveis e gentis. Tão necessário à nossa sociedade, tão mais justo e correto.
Precisamos levar em conta que o número de homens machistas ainda é infinitamente superior ao número de mulheres feministas. A conta não fecha, elas tentam escapar desse antigo paradigma porém nem sempre é fácil encontrar espécimes que fujam a esse padrão de comportamento machista.
A heterossexualidade, por ser uma orientação sexual, não é escolhida, a direção do desejo sexual, está voltada para um objeto (o outro) diferente do seu sexo. Ela não é feita através de uma escolha racional, muito embora pelo seu caráter fluido, a sexualidade pode se adaptar a outras formas de se exercer o prazer para além da sua orientação sexual. Desde que a fantasia seja devidamente alimentada.
Ainda vai levar um bom tempo até que essas negociações entre os padrões de comportamento e as escolhas, preferências, desejos e fantasias, possam ser conciliadas de forma pacífica e sem cobranças. Por enquanto seguimos colocando esses e outros perrengues “embaixo do tapete” e haja ansiedade para aguentar o tranco!
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Médica e Sexóloga – @draalcionebastos