Estranhos encontros das cores

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Por Eliecim Fidelis

A comemoração do Dia da Consciência Negra e a divulgação da Operação Punhal Verde e Amarelo motivaram as reflexões que ora compartilho com o leitor. Chama a atenção o des-encontro entre as cores negra, verde e amarela. O novo feriado conclama a liberdade, ao resgatar a dívida histórica da escravidão. O outro evento conclama a investigação de um plano de morte que visa o fim da liberdade de uma nação. Nesse caso vamos deixar que as autoridades cuidem de seus desdobramentos, separando o joio do trigo e reservando a César o que é de César.

Quanto ao novo feriado, já tendo ressaltado sua importância, volto a fazer algumas considerações sobre o título Dia Nacional da Consciência Negra. Esse título nos remete ao enredo do romance A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, de onde gostaria de destacar o des-encontro das cores branca x negra. Um desencontro que move e é movido pelo desencontro humano.

Uma escultora branca, da elite carioca, não compreende o motivo de sua empregada tê-la abandonado. Ela se frustra ao encontrar o quarto da empregada limpo, pois a expectativa era atropelar-se em poeiras e jornais velhos. Indigna-se pela ousadia de Janair, por ter deixado na parede do quarto um desenho misterioso. A patroa é tomada pelo ódio daquela mulher, cuja imagem vai lhe chegando à memória: corpo preto e quase sem carne, peitos e ancas encolhidos, roupa sempre escura. A ausência da empregada passa a representar uma presença necessária, a escancarar fissuras sociais, morais, éticas e subjetivas, através de hieroglifos a serem decifrados: uma carta de alforria ou uma carta de amor?

Como se obtivesse licença de Cérbero para abrir a porta do guarda-roupa, GH se defronta com o olhar de uma barata velha que lá de dentro a olha, e ela se sente nas profundezas do submundo. Diante desse ser inusitado, capaz de sobreviver à hecatombe nuclear, ela é acometida de uma espécie de síncope, e perde-se em elocubrações transgeracionais, concluindo “que o mundo não é humano, e que nós não somos humanos”. (Cf. Lispector, 2020, p. 67). Esse encontro epifânico com a barata leva GH a uma tentativa de resgatar a humanidade em si própria, em um ritual que inclui a degustação da massa branca expelida pela barata. E depois de se reerguer e reaver sua desorganização subjetiva, ela está pronta para recuperar seu estado de ‘consciência’. Não uma ‘consciência negra’, nem verde, nem amarela; nem branca, preta, parda, indígena ou de qualquer outra etnia ou descendência.

Precisaremos chegar a esse confronto radical com a matéria invariante que constitui o humano e o inumano para que os nomes de feriados não selecionem cores, e para que as cores da bandeira não se borrem com o nome da morte?
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Psicanalista e escritor, membro do Espaço Moebius Psicanálise/fidelis.eli@gmail.com