Por Gerson Brasil

Chovera. Os passeios acolheram o presente e se livraram das insuportáveis poeiras, a obrigar o pano umedecido percorrer as vitrines, antes de ocorrer uma revolta das vendedoras uniformizadas, maquiadas, e ferozes críticas. Não suportavam o estalar dos saltos de quem imita a compra e segue, voa, desaparece; ‘não faz comentário, impedindo a leitura labial, cortando, de súbito, qualquer sugestão, uma apreciação estética, cotejamento lateral da manga da blusa – no verão é aconchegante -; poderia dizer see you later, mas se comporta como Diana Surpreendida de Lefebvre, ou porque a conta bancária intimida aqueles que não moram na Rua Affonso Rey’.
A chuva houvera depositado a insistência e no more, e o ladrão tinha pouco conhecimento do ofício e a necessidade, ou o devaneio, o levou até à sirene dos carros da polícia. Fecharam o quarteirão e danificaram os rádios comunicadores, por inépcia, foi preciso gritar, péssima ideia que Maria Santiago reprovou e se antecedeu aos outros irritados e se fez ouvir como nos discursos do quem deseja ser ouvido, mas a plateia já sabe do que se trata, suspira pela chegada do Martine.
“É insuportável, falam como se houvesse alguma coisa importante como a morte, sem saber que às vezes é perpassada pela trapaça, uma espécie de trote, para destruir a reputação de quem fez o anúncio, com um certo regozijo, superior ou igual ao conhecimento da astronomia, reservado a algumas pessoas, portando livro de capa dura, segurando-o de encontro ao peito e expectador da cena, na perspectiva de estar diante de desalinho, na espera da estrela se tornar conhaque”.
O ladrão encurralado, não só pela polícia, já havia multidão. Como ela surge? Desconheço, é pouco provável a métrica. A heterogeneidade inclui blusas, vestidos, calças, ternos, corpos despojados dos corpos, sem que se saiba se vão prosseguir até o próximo ladrão, ou até a próxima chuva. Impossível datar o acontecimento, recorrer ao relógio é um subterfúgio –‘aconteceu às 12h30-‘, no registro se comporta bem, mas não diz qual o número do sapato, da camisa, se Martine lhe faz bem, provoca enxaqueca e qual a orientação do médico. Receitou algum medicamento? Estava chovendo e se esqueceu do bloco do receituário? Acordou indisposto e adivinhou que seria um péssimo dia e revidou com desleixo? O protesto não se contenta em sugar o seio da mãe, desliza por toda a superfície, atravessa gerações. Ocorra não haver garantia, evidência, pista, sinal, sempre estará presente, como os pobres estão na bíblia, nos vãos, seja na arquitetura dos campos ou das cidades, ou na teimosia insondável.
Mary Norma Jeane Mortenson, americana, loira e ruiva, às vezes, estava no local, subiu num banco, oferecido pelo garçom do bar; queria tomar-lhe as pernas, hesitou, pensou na mãe, “serei desonrado e a família perderá o verniz social conquistado em homenagem ao avô pendurado na sala; não sei como não se cansa, desistiria. Como consegue ficar olhando para família tanto tempo; descanse, como alguma coisa, mais tarde Ingrid Bergman estará na tela da TV, aprecie a notificação do belo, não cobice, todos vão perceber e a honraria pode desaparecer e mesmo que você refute, terminará sendo alojado no porão’. ‘Todos esses anos fomos enganados por esse velho idiota e hipócrita’.
O ladrão tomou conhecimento das pernas, logo depois do vento pregar um susto, pensou em repreendê-lo, por estar atrasado. “Não sei por onde já passaram, quais os caminhos percorridos e se os sapatos sempre lhes faziam companhia, ou negligenciavam quando estavam aborrecidos, por serem esquecidos por dias, dentro do armário, e ao lado de rivais de pouca conveniência, mais parecia um acinte, uma supercilia malfeita, expansiva, intimidadora, um telescópico amador, não se podia ver a lua, estava encoberta, então porque aquela inutilidade permanecia na casa?
Na próxima vez vestirei um terno e comprarei novas abotoaduras, quem sabe aprecie e o endereço venha a ser depositado junto à conta do banco, melhor sigilo, impossível. Os concorrentes vão se danar, espero, como também rogo para que as contas estejam sendo expulsas dos bancos, seja como for, conheço alguns gerentes e sei ser gentil. O policial de óculos, um pleonasmo vagabundo, há de ser vencido facilmente, com ou sem a barba e as mechas de cabelos desesperadas, mas realçando a testa – acabou de levantar o senhor para o garçom e na contingência piscou para Mary grudada num vestido de borracha. Só era possível retratar a agora ruiva, na semana passada despontava loira, com apenas um traço de nanquim num papel de algodão, 20×60; caso houvesse a disposição do enquadramento numa pintura, haveria a dificuldade de escalar a toponímia do corpo. O nanquim tinha a conveniência de secar rapidamente, antes que houvesse algum movimento, uma respiração mais forte, ou a sombra de um espirro”.
Ramires Pontualdo ia à escola Santa Madalena diante da incredulidade dos outros rapazes, da família e da professora, a suspeitar do alvoroço das moças, risos sonsos, alguns nervosos, mas o pescoço sempre empinando os olhos a subir nas árvores, sem furto, portanto, não se podia cogitar a inclinação à desobediência das regras, eram claras e incisivas. Mas havia uma interrogação maior sobre o futuro policial. Certa vez não contente em calcular o perímetro do triângulo escaleno, com seus três lados diferentes, contestou o professor de geometria ao afirmar que os números primos podem ser suscetíveis de serem provados, embora a geometria euclidiana refute essa ideia. Não existe uma fórmula que permita descobrir a sequência dos números primos, que só podem ser divididos por 1 ou por ele mesmo. Pontualdo insistiu, argumentando que “é preciso levar em conta as circunstâncias, porque não se trata de uma demonstração e sim de um postulado, um axioma, a se tomar por verdadeiro, e as verdades são ilusões provisórias, fruto das imaginações construídas historicamente e de ordem metafísica. E por acaso o sonho, as adivinhações não são legitimadas? Faz-se necessário uma evidência”?
De caligrafia ruim, a atrair olhares curiosos e repugnantes, espacejou as idas à escola até desapareceram, num domingo de cachorro quente, danças, moças de coxas suntuosas, roçando nas saias e algumas exibindo o adesivo da grama do colégio preso nos braços.
Soldador, motorista de carros e embarcações, pintor e porteiro de hotel roubaram-lhe horas, dias, meses, anos e quando já estavam na iminência de se tornarem membros da família foram dispensados também num domingo, na soma de 26.280 horas, o suficiente para Beatriz o colocar no uniforme, azul de policial. Agradeceu a insistência de Beatriz, mas não a parabenizou com o casamento, “não é incomum esquecer de fazer certas coisas, as prerrogativas estão sempre dispostas a seguir meus impulsos, embora façam certas ressalvas de ordem moral, mas desconfio estar diante de uma cilada, acossando-me uma obrigatoriedade, por pura vaidade de abocanhar um certo o lustre social”.
Um tiro e um corpo embrulharam a cena, não estava previsto o acidente, mas aconteceu, talvez o policial, o ladrão, a multidão e as vendedoras não fossem suficientes, naquele dia, agora, com a ruiva já sem pernas, não eram mais necessárias e sim o médico, a ambulância, afinal é preciso prestar socorro. O ladrão ficou atônito, porque reconheceu o assassino, mesmo estando longe, era Alberto Saraiva Torres e Torres, mantivera conversa na semana passada, durante almoço na casa da Rua Padre Soares de Deus, frontispício arrogante e jardim impecável. “Fora servido, pela criadagem, tomates quase desidratados com granolas torradas e azeite de oliva com 0,1 de acidez, produzido na Turquia. Antes, queijo não pasteurizado – é preciso evitar doenças que se alojam no intestino -, com molho de pimenta amanteigada e um pouco de suco de limão siciliano. Coubera também mastigar castanhas de caju, inteiras, assadas, para aplainar o rolo grosso da fome e permitir a bela vista dos pratos.
Em outras ocasiões era servido pão de queijo Cottage, com uma pasta de azeitonas, obrigado, respeitosamente, a comparecer à mesa, depois de estar na companhia de ovos e farinha de trigo. Ao contrário dos outros pães, era roliço e de densidade amorosa. Torres lhe ressaltava as proteínas e a contribuição oferecida ao bem-estar do corpo, ‘ e a saúde espiritual’.
Certa vez ocorreu-me o presente de partilhar berinjela à Bolonhesa, com o agora assassino; num desleixo da polícia assomei a cabeça, por entre os carros, numa distância considerável, e presenciei o tiro na cabeça de um dos clientes do bar, mesmo estando a vítima sentado numa mesa, com mais seis pessoas e alguns garçons servindo-os. Torres não comia carne, em algumas ocasiões um frango, na forma de filé na chapa. A preferência recaia sobre os peixes, sempre acompanhados de tortas, a de maça e cebola era a preferida. Dispensava arroz – ‘um veneno’. Homem de pouca bebida e de muitas frutas, almoçava no plural, normalmente sozinho ou com poucos amigos e amaldiçoava os comedores de batatas, embora fosse um homem do Mediterrâneo, da Toscana.
Apontou para a reprodução da pintura de Vincent van Gogh, “Os Comedores de Batata”, depositada numa parede lateral da sala – se sentava de costas para o quadro-, e disse que era necessário a educação do almoço, sem manuais ou receitas extraordinárias, mas criticou a avidez por batatas, como se fosse vencer a fome, instantaneamente, culpá-la pelas desgraças, sempre dispostas, e repetidamente castigando os dentes com mais batatas e alimentando o álibi da necessidade de comê-las.
Criticou a Santa Ceia – ‘uma visão pueril e banal da mesa’, e de ter perpetuado o péssimo hábito de conversar à mesa, desrespeitando, o almoço e também o jantar, ‘ocasiões únicas e que não se repetem’. Num desses almoços perguntei porque matava pessoas, tinha ouvido dizer que lhe cabiam crimes, sem que fosse possível uma certificação, talvez devido ao abuso da cientificidade, do cálculo, da estatística e da longa tradição dos comentários, a darem volta ao mundo, em serem interpelados. Inesperadamente revelou que deixaria de matar. Mas por qual Motivo”? ‘Para deus não ter o trabalho de acolher tantas almas, a lhe retificar o poder, sem que se saiba se há objetividade no critério adotado, ou se trata de subjetividade, e a validade um perjúrio’. Mentiu, mas os jantares sempre estarão dispostos ao testemunho.
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Escritor e jornalista

