Por Victor Pinto
“Traidor da Constituição é traidor da pátria.” A frase dita por Ulysses Guimarães no histórico discurso de promulgação da Constituição Federal de 1988 segue ecoando como advertência. Em um Brasil onde parte do Congresso ameaça corroer a espinha dorsal do Estado Democrático de Direito, revisitá-la é mais do que um exercício histórico, é resistência.
Desde o Império, as constituições brasileiras refletem as disputas pelo poder e pela legitimidade política. A Constituição de 1824 centralizou autoridade nas mãos de Dom Pedro I, com o famigerado Poder Moderador. A Carta de 1891 instaurou a República, mas limitou a democracia a poucos. Já a de 1934 introduziu direitos sociais e trabalhistas, mas durou pouco: o Estado Novo de 1937 silenciou a cidadania e consolidou o autoritarismo. A redemocratização de 1946 foi seguida, duas décadas depois, por outra ruptura com o golpe de 1964. O ciclo só se encerrou em 1988, com a promulgação da Carta Cidadã.
A Constituição de 1988 representou, pela primeira vez, um pacto social genuinamente plural, nascido do diálogo com a sociedade civil. “Temos ódio e nojo da ditadura”, disse Ulysses no mesmo discurso. Sua fala não era retórica: era o ato de retificar um país que aprendeu na dor o preço da ausência de liberdade. Naquele momento, o Brasil escolhia colocar a dignidade humana e a justiça social no centro da vida pública. Da proteção das minorias à liberdade de imprensa, do SUS à educação universal, o texto constitucional traduziu o desejo de uma nação mais igualitária, mesmo imperfeita.
Mas a democracia, como lembram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em Como as Democracias Morrem, não se destrói apenas com tanques nas ruas. Ela se esvai lentamente, quando atores políticos corroem as instituições “de dentro para fora”. A Constituição é o principal guardião desse equilíbrio: quando enfraquecida, abre-se caminho para o arbítrio, o populismo e a manipulação.
É nesse contexto que a recente PEC da Blindagem, cujo apelido na Band News eu coloquei de “PEC da Safadeza”, soou como ameaça direta. Ao tentar restringir investigações e dar superpoderes a parlamentares, ela inverte a lógica constitucional: coloca o poder acima da lei. Um retrocesso disfarçado de proteção institucional. Ulysses Guimarães, se vivo fosse, reconheceria nesse gesto o mesmo vício autoritário que tentou banir há quase quatro décadas.
A Constituição de 1988 foi erguida sobre o princípio da limitação do poder: é o antídoto contra o absolutismo e o corporativismo que corroem a confiança pública. Ignorá-la é trair o próprio juramento de quem exerce mandato em nome do povo. Por isso, é legítimo afirmar: quem desrespeita a Constituição é traidor da pátria.
Vivemos um tempo em que muitos que juram defendê-la são os primeiros a testá-la. Tentam submeter o Supremo, driblar regras eleitorais, fragilizar o Ministério Público e naturalizar a impunidade. A Constituição, porém, não é um obstáculo ao poder, mas é o seu fundamento. E, como ensina a história, toda vez que o país a violou, mergulhou no caos institucional.
Ao longo de 37 anos, nossa Carta Magna passou por mais de 140 emendas, algumas necessárias. O desafio é mantê-la viva sem desfigurá-la. Reformar não é destruir; atualizar não é corromper. Defender a Constituição não é um ato de ideologia, mas de sobrevivência democrática.
Ulysses Guimarães encerrou seu discurso em 1988 dizendo: “O Brasil muda, a Constituição fica. A Constituição é a fortaleza da liberdade.” Hoje, cabe repetir suas palavras com o mesmo vigor. Porque, em tempos de tentação autoritária, lembrar a história é o primeiro passo para não repeti-la. E preservar a Constituição é, mais do que dever cívico, um ato legítimo de amor à pátria.