A grandeza e a sujeira das mãos

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Por Joaci Góes
(Para a querida amiga e notável infectologista Nancy Silva)
Todas as coisas que o Homem acrescenta ao mundo são criações culturais, através de ações coordenadas pelo cérebro, por meio dos pés e das mãos, cabendo a quase totalidade desse agir físico ao trabalho das mãos. Não estranha, pois, que o sociólogo James Stockinger (1953- ) considere o dever individual de solidariedade coletiva a lição mais fácil a transmitir, de geração a geração, bastando lembrar, como ele sustenta, que “é com as mãos de terceiros que são colhidos os primeiros frutos da mãe natureza que vêm à nossa boca. É pelas mãos dos outros que o nosso corpo é cuidado até depois da infância. Ao longo da vida, é grande a dependência das mãos de terceiros para assegurar nossa sobrevivência. Foram mãos de terceiros que nos trouxeram do útero para o palco da vida. Outras mãos plantam, colhem e distribuem os alimentos que chegam às nossas mesas, fazem e cosem os tecidos que nos vestem, além de construir nossos lares. São de terceiras pessoas as mãos que provocam prazeres em nossos corpos, nos momentos de amor ou de alegria, além de nos proporcionar conforto nas horas de aflições. Mãos de terceiros extraem da mãe natureza as matérias primas com que produzir os objetos de nosso consumo individual. Por derradeiro, é pelas mãos de terceiros que somos transportados para a última morada.”

            Por outro lado, nossas mãos são, sem dúvida, a parte de nosso corpo que está em permanente contato com objetos e superfícies carregadas de bactérias de natureza vária, muitas delas agentes transmissores de doenças que podem ser fatais, ao penetrarem em nosso organismo, particularmente pela boca e pelos olhos.

 Feito esse breve reconhecimento da diversidade de papeis cumpridos por mãos humanas na construção dos processos civilizatórios, vejamos uma dimensão intensamente desconfortável e prosaica da ação das mãos desempenhada em nossa realidade cotidiana, notadamente quando nos encontramos sentados à mesa de restaurantes, mundo afora, em geral, e no Brasil, em particular, com ênfase especial no que sucede em nossa Bahia com h, sob a liderança da vetusta Salvador, uma das cidades mais antigas a sediar o poder europeu no Continente Americano.

Impressiona a gregos e baianos o constante mau gosto com que muitas pessoas se aproximam da mesa onde fazemos refeições e nos estendem suas mãos para o aperto fraterno, quando já havíamos lavado a nossa para o saudável toque nos alimentos inaugurais do repasto. Fazer o quê, senão corresponder ao bem intencionado gesto? Situações há em que retornamos ao lavabo para renovar as abluções, de tal modo ocorre a repetição do episódio. Registre-se que na Bahia, mais do que em outro lugar qualquer, a experiência é protagonizada por simpáticos garçons que envolvem com as suas nossas mãos desamparadas, numa demonstração do amadorismo que caracteriza nossa experiência como um destino turístico que claudica e recua quando outros prosperam.

Se outro não tiver, esperamos que a esta despretensiosa crônica seja, ao menos, reconhecido o mérito de interromper abordagens que, na respeitável percepção de alguns, soam como prenhes de excessiva gravidade.

Vamos incorporar o hábito civilizado de cumprimentar com a palavra e um meneio de cabeça os que se encontram à mesa alimentando seus corpos, preservando, assim, o incomparável prestígio das mãos como os maiores protagonistas do obrar humano, material e espiritual.