A verdade dos Raimundos deste mundo

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Por Eliecim Fidelis

As convicções do mundo pareciam estar a serviço do Raimundo. Mal entrei no veículo, ele esbanjava razões. Vamos a Amaralina, eu disse. Arrancou o carro com uma das mãos no celular preso ao painel, e sem olhar em minha direção disse, aliás gritou: “Porra! mulher só serve pra apertar a mente do homem! Tô aqui na batalha, véi, e ela vem me tirar do sério”. Perguntei: você ouviu o destino da viagem? “Tá aqui no aplicativo; pelo Waze chegamos em treze minutos”. Por um momento pensei em pedir para saltar, mas observei que o motorista dirigia certo e me respondeu com precisão, então me acomodei.

Sem pedir licença nem dar explicação, ele ligou um áudio no celular e disse: “Escuta só”. Segui viagem ouvindo a voz feminina: “Desculpa, Mundinho, mas você sabe muito bem porque mexi no seu celular; a menina estava na porta…”. Não consegui escutar tudo porque o rapaz interrompia o áudio para dar sua versão dos fatos à medida que a mulher falava. Como se disputasse a altura da sua voz com o áudio, ele gritava: “Eu já disse que não é pra pegar no meu telefone!”. “Eu já sei a hora de pegar a menina na escola”. “Eu tô aqui na porra da batalha e você não me deixa em paz!”. “Eu já disse, vou acabar perdendo a paciência!”.

Como ele me olhava insistente pelo retrovisor, pedindo minha aprovação, resolvi perguntar: “Raimundo, por que você dá tanta importância que sua companheira pegue no seu celular?”.

A velocidade do veículo começava a reduzir, pois o destino se aproximava. Acabei me arrependendo de ter feito a pergunta. Precisei pedir licença para interromper a resposta que se alongava: “Taí, só porque fiz uma besteira, ela agora não me dá sossego. Mas eu digo logo a verdade. Só porque um dia nas minhas escapadinhas, né” — olhou-me sorrindo, pedindo parceria — “peguei uma desqualificada que ficou grávida e agora a miserável fica mandando mensagem e telefonando pra minha casa. Mas eu já disse que não foi nada sério, foi só uma aventura. Se ela foi burra é problema dela; só quero que não fique me atazanando o juízo…”.

Sabemos que fatos dessa natureza são corriqueiros nos encontros desencontrados dos Raimundos com as Marias pelo mundo afora. Mas o que mais nos chama a atenção é o princípio de certeza misógina que o Raimundo demonstra no que fala e no que pensa. E isso nos leva a refletir sobre a miséria trazida à humanidade pelos que pensam ser senhores absolutos da Verdade e da Razão narcisistas.

Desde que o mundo é mundo, a Razão e a Verdade têm sido usadas, por quem delas se apodera, para justificar as menores discórdias de vizinhos, até os mais sórdidos regimes despóticos e totalitários, assim como as guerras e extremismos que assolam este mundo de tantos Raimundos.    
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Psicanalista e escritor, membro do Espaço Moebius. fidelis.eli@gmail.com