Por Joaci Góes
(Para o jornalista e amigo Sérgio Mattos!)
Vencendo a tentação de comentar tragédias brasileiras silenciosas muito mais graves para o povo brasileiro do que as enchentes do Rio Grande do Sul, como a péssima educação que praticamos e a ausência de saneamento básico para grande parte da população, o que faremos mais adiante, continuamos a tratar da inveja na opinião de grandes pensadores.
L’Envie, Son Rôle Social é o título do livro de 268 páginas, publicado em 1932, no qual Eugène Raiga(1860-1942), escritor versado em direito público, diplomacia e esforço de guerra, realizou a tarefa histórica de, pela vez primeira, tratar extensivamente a inveja com exclusividade. E o fez projetando novas luzes sobre este sentimento que, conforme Molière, sobrevive ao invejoso. De decepcionar é que um trabalho de tamanha importância só possa ser encontrado nos leilões de livros raros, realizados pelas livrarias virtuais. É possível que tal omissão se insira no rol dos preconceitos que, historicamente, têm contribuído para silenciar as discussões sobre a inveja, como temos enfatizado. Para Raiga, a modéstia, mesmo quando fingida, não obstante a já mencionada opinião de Goethe (“só os canalhas são modestos”), seria a única e importante virtude produzida pela inveja, na medida em que, arrefecendo-a, torna possível a vida social.
Depois de examinar a inveja em cada um dos diferentes cenários em que a convivência humana se realiza, como família, trabalho, clube e círculos profissionais, Raiga avança para interpretá-la nas sociedades democráticas, nas religiões e nas relações internacionais. Desenvolveu o pensamento do francês Antoine Rivaroli (1753-1801), segundo o qual “a faculdade mental de comparar que, no intelecto, é uma fonte de justiça, é, no coração, a mãe da inveja”. A inveja nasce da comparação porque esta conduz à noção de inferioridade de uma das partes. Como Bacon, Raiga distingue entre inveja comum ou vulgar e inveja-indignação, sendo esta levantada contra uma injustiça. “Inveja vulgar e inveja-indignação, ambas implicam sempre uma comparação entre as condições de cada um dos antagonistas e um julgamento dos seus respectivos méritos. Seus modos de reação são praticamente os mesmos. As feridas do orgulho abatido ou da vaidade ofendida provocam, em ambas as situações, condutas condicionadas pelo temperamento e o caráter de cada um, cuja gama se estende do simples gesto irônico, ou desdenhoso, à violência do ódio e ao crime”. O problema está em que fica por conta de avaliações subjetivas dizer onde termina uma e começa a outra.
Ao classificar o povo francês como acentuadamente anarquista e nivelador, Raiga reconheceu sua especial aptidão para invejar: “Anarquista, no sentido etimológico da palavra, e, consequentemente, autoritário, o francês não tem maiores cuidados com a liberdade dos outros. Não sendo capaz de suportar as superioridades, aspira a igualdade como o mínimo. Ele é ardentemente nivelador… Em Paris, a inveja está em cada esquina, em todos os andares porque, em toda parte, há orgulho, concorrência e rivalidades, ascensão de uns e fracasso de outros”. Eugène Raiga criticou, acerbamente, o processo eleitoral dos regimes democráticos, precisamente pela manipulação despudorada que permite fazer da inveja social fator de atração de candidatos inescrupulosos. Em tal contexto, a presença de bons candidatos pautados pelo bem público seria exceção. Do mesmo modo, condenou a insensibilidade dos socialmente aquinhoados, por não adotarem as devidas cautelas em face da potencial inveja das massas. Reconheceu a proximidade social como componente básico do caldo de cultura da inveja, ainda que as condições do seu tempo, marcadas pelo eudemonismo (doutrina que sustenta serem moralmente boas as políticas que buscam a felicidade humana), propiciassem comparações entre membros de quaisquer escalões sociais. Anteviu o fracasso do socialismo por usar, paradoxalmente, a própria inveja das massas para extingui-la, mediante a promessa de um mundo utópico. Criticou, duramente, a propaganda socialista que, apoiada na inveja, instiga o ódio e o desejo de vingança dos invejosos, concitando-os a destruir o sistema social existente, sem ter outro para pôr em seu lugar. Apesar disso, observava, “todo avanço, até agora conseguido pelo socialismo, se apoia na inveja”.
Continuaremos com Raiga.