Mais duas opiniões sobre a inveja

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Por Joaci Góes
(Ao casal de amigos Giovanna e Roberto Victer)
As reflexões de Karl Marx (1818-1883) sobre a inveja são de quando ele contava, apenas, vinte e seis anos, em 1844, e figuram nos Manuscritos. De cunho teórico e político, são condicionadas pela sua visão ideológica da organização humana. A excessiva juventude de Marx explicaria as contradições e deficiências aí encontradas. Marx distinguiu entre “comunismo subdesenvolvido” e “comunismo desenvolvido”, concluindo que todas as formas anteriores à sua, eram “subdesenvolvidas”, “vulgares” e “invejosas”, enquanto a sua era “desenvolvida” e “científica”. Equivocadamente, definiu a inveja como “um modo disfarçado de cobiça” que se dirige “contra todo tipo de propriedade privada que pareça ter valor expressivo”, conclusão negada pelos fatos, forçada para justificar a estatização de todas as propriedades, conforme preconizado por sua doutrina. Cometeu ato falho ao admitir que é desejo do invejoso “reduzir todas as coisas a um nível comum”, reconhecendo a relação permanente entre o comunismo e a inveja. Tentou racionalizar sua contradição, dizendo que só as “formas vulgares” de comunismo estavam sujeitas à inveja, já que na sua, a “científica”, não haveria propriedade privada para invejar, válvula de escape notoriamente retórica e utópica. Cometeu erro palmar ao afirmar que “inveja e igualitarismo constituem, de fato, a essência da competição”, porque a economia de mercado conduz à emulação, criando diferentes hierarquias e não igualitarismo.

Nicolai Hartmann (1882-1950), Filósofo alemão, influenciado por Platão e por Kant, em sua Ética, seguiu os passos de Scheller ao tratar da inveja, sentimento a que atribuiu importância tanto para o desenvolvimento social, quanto para os movimentos revolucionários e os eudemonísticos, ou seja, movimentos destinados a melhorar o nível de bem-estar e de felicidade das pessoas, a partir da Revolução Francesa. Focalizou o contraste existente entre o eudemonismo antigo, “veículo para uma consciência de valor altamente desenvolvida” do indivíduo, e o eudemonismo pluralista da modernidade, (ele escrevia em 1932) que é a atrofia e o empobrecimento do sentido de “valor”.

O eudemonismo moderno prioriza a felicidade coletiva sobre a individual, o que seria um retorno ao Utilitarismo de Jeremy Bentham, consubstanciado na expressão “o maior conforto para o maior número”, cujas fraquezas conhecidas não se alterariam com uma prática social restrita a programas distributivos de bens de consumo. Ocupado com a tarefa, virtualmente infinita, de distribuir conforto, considerando a capacidade ilimitada das pessoas de colocarem demandas novas sobre as satisfeitas, o indivíduo perde a visão de seus objetivos existenciais maiores. Essa utópica promessa ou expectativa distributivista leva os segmentos carentes a debitarem seus males aos privilégios acumulados pelos abonados, supostamente, às suas expensas. Por isso, Hartmann condena a atitude de líderes populistas de visão curta, descomprometidos com valores éticos, por insuflarem as massas, apelando para o que há de mais baixo e cruel nos instintos humanos, liberando as paixões, ao risco de perderem o controle sobre elas, contra os que desfrutam de elevados padrões de vida, sem levar em conta o trabalho, a disciplina, o sofrimento e o talento utilizados em sua conquista. E adverte: “O cidadão oprimido, o trabalhador, aquele que é explorado ou pensa que é, vive sob a crença de que os ricos são mais felizes, por imaginar que têm tudo que ele deseja, em vão. Na vida dessas pessoas só enxerga valor hedonístico. Não vê outros valores, como educação, bom gosto, saber, não raro, conquistados duramente. Não está informado das exigências do trabalho mental, nem do peso das grandes responsabilidades” (Ética).

Sob o impacto das impressões do momento, Nicolai Hartman prognosticou o fracasso das políticas eudemonísticas, inviabilizadas pela inveja e corrupção, ao concluir que: “Se um cidadão comum se encontrar sob tal ilusão, não é de estranhar. Se um demagogo fizer uso dessa ilusão, como meio para alcançar seus fins, isso se tornará em suas mãos uma faca de dois gumes, mas, explica-se, do seu ponto de vista. Se, todavia, o filósofo deixar-se conduzir para justificar e sancionar esta ilusão, sua atitude ou é inescrupulosa ou decorrente da mais profunda ignorância moral. Não obstante, as teorias sociais dos tempos modernos têm percorrido este itinerário fatal desde suas primeiras aparições. E deve ser encarado como uma desgraça para o movimento social até nossos dias, em que esta sanção tenha prevalecido e nos tenha sido entregue em mãos…. Aqui, como em tantos outros setores da nossa vida moral, o trabalho principal ainda está para ser realizado” (Obra citada).