“Montanha”, de Cyro dos Anjos: psicologia política

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Por Elieser César
Com uma obra pequena em quantidade, mas densa de penetração psicológica – pela riqueza subjetiva de seus personagens – o escritor mineiro Cyro dos Anjos (1906-1994), escreveu dois grandes romances intimistas, O amanuense Belmiro e Abdias.Tanto Belmiro quanto Abdias experimentam um desajuste em sociedade, como se se sentissem um estranho no ninho de cobras dos homens. São tímidos, corretos, vivem num desassossego permanente, num renovado estranhamento com o mundo lá fora. De ambos emanam uma vulcânica vida subjetiva.

Eis que agora topo com o terceiro romance de Cyro dos Anjos, Montanha, diferente dos outros dois como um noviço casto se difere de um conquistador vulgar. Em Montanha, o escritor troca o subjetivismo paralisante pelo dinâmico, cínico e arrebatador objetivismo da política.

É um romance político em que o leitor vê reproduzidas as atuais mazelas de um país que parece ter teimado em não dar certo. Escrito entre 1952 e 1954, quando Cyro dos Anjos ocupava a cadeira de estudos brasileiros da Universidade do México, o romance é ambientado no contexto histórico imediatamente posterior ao Estado Novo. Tem a ossatura do romance à clef, que disfarça personagens reais que podem, facilmente ser reconhecidos por quem conhece a história da época em que foi escrito.

REALPOLITIK

Paira sobre os personagens a sombra paternalista e ardilosa de Getúlio Vargas. Como ocorre ainda hoje os interesses pessoais e corporativos movem a maioria dos políticos. A nação que se dane, o importante é o poder e encher os bolsos, como faz o insaciável Centrão (esse gigolô da nacionalidade) nos dias atuais.

Transitam pelo cenário político ambiciosos sem escrúpulo como Pedro Gabriel, ex-chefe da polícia que tudo faz para governar Montanha (translação fictícia de Minas Gerais), trampolim para chegar ao Palácio do Catete (sede do governo federal antes de Brasília); alpinistas sociais, como a bela e perigosa Emília; a inteligente Naná, seduzida pelo sátiro Gabriel, trinta e um ano mais velho; comunistas que deliram com as inexistentes condições objetivas para a Revolução; chefetes políticos paroquiais; políticos e servidores públicos corruptos; gente decente e desprendida, como os patriotas (no bom sentido), Tadeu e Hermeto. Enfim, uma fauna diversificada, com interesses diversos e difusos, que agora pode ser percebida no jardim zoológico do Congresso Nacional, repleto de lobos em pele de cordeiro. Tudo o que ainda se encontra e se tropeça no Brasil contemporâneo.

O que mudou? Os agentes políticos e sociais, com as mesmas exceções históricas.Montanha é uma lição de política, da realpolitik, não a desejada. Querem uma frase atual, sintomática do aparelhamento fardado do Estado no vergonhoso governo de Jair Bolsonaro?: “Quando descem do cavalo para entrar na política, os militares se esquecem de tirar as esporas…”.

Abuso do poder econômico? Vamos lá: “E tudo muito bom, quando o dinheiro vai e voto vem”.
Pragmatismo do PCB: “Quando poderás sentir a beleza dialética de estendermos hoje a mão a certo grupo reacionário, sabendo que amanhã teremos de exterminá-lo sem piedade?.”

Se você, eleitor crédulo, é daqueles que acreditam que os programas dos partidos políticos, apresentados com solenidade pomposa durante a propaganda eleitoral, foram feitos para serem cumpridos (alguns o são parcialmente), se desiluda: “Ninguém luta pelo poder com o objetivo de realizar programa – dissera. Quer-se o poder pela sua própria substância, pelo que representa em si mesmo. Os homens que escrevem programas não são políticos, são teóricos de gabinete. Os políticos lidam com fatos e não com ideias…”

Agora, em meio à seara árida, uma pausa para dois lirismos: “- O amor é um rapto, filhinha, somos confiscados até de nós mesmos.” Segundo: “Olha o mar, que zurze a rocha, compassadamente. Dir-se-ia antes uma carícia de seres primitivos.”

De volta ao zurzir predatório dos políticos: “…em política não se pode cultivar delicadezas de estômago.” E ainda esta para digestão de pedras: “…a política não tem entranhas.”

Tem ainda a psicologia de massas: “A massa não conhece lógica. É só emoção e sentimento.” E, para quem fica decepcionado com os acenos não realizados do mundo, fica a lição: “A vida não promete nada, mas é bela.”

Já a política promete tudo.
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Jornalista e escritor

Foto: Maria Cecília