O “PUNCH” DO LELÉ

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Por Marcelo Pockye

Aloisio Marques de Souza era um sujeito de origem humilde. Também pudera, um cara que nasce no Acre nos anos 30 tem que ser humilde, né? Imagina a infância do cabra. Tenho orgulho de dizer que essa mistura de cearense com boliviano era meu pai.

Meio índio, baixinho, frágil fisicamente, muito inteligente. E doido, doido varrido. O apelido Lelé veio de lelé da cuca e não de algo parecido com Aloisio. Eu hoje, com minha certeira psicologia de bar, tento entender se essa “loucura”, na verdade, era uma espécie de agradecimento de sair da sua terra natal e conseguir enfrentar “o outro lado”. Uma pequena fascinação entranhada na pessoa até seus últimos dias.

Uma característica que lhe era praticamente unânime: boa praça. A formação em Direito na antiga Faculdade Nacional do Rio de Janeiro nos anos 50 lhe impôs um hábito quase morto nos dias atuais, o da leitura. Leu muito. Viu e participou de toda a efervescência política da época. Essa breve introdução é para dizer que suas conversas e histórias eram intermináveis. Algumas histórias verdadeiras e outras, nem tanto, se é que você me entende. Adorava contar uma história. “Algum fator genético aparece nesse parágrafo?” me pergunto agora. Se você gostasse de uma introdução de uma delas, estava fadado a ver aquele moreninho franzino gesticulando e olhando para o nada por, pelo menos, meia hora. Blá, blá, blá.

“Marcelinho, tome muito cuidado com quem não te sacaneia, com quem não brinca contigo”. Esse ensinamento a mim dirigido ilustra com perfeição seu gosto pela intimidade. Ele não apenas usava a intimidade verbal, mas a física também. Tudo conforme seu louco limite. Tremendo vira lata, meu pai, por exemplo, ao ser apresentado a um filho de alguém, podia ter o moleque 4, 5 anos, dava logo um chute na bunda do coitado. Por várias vezes, o vi chegar num ambiente e escutar uma criança gritar: “Lelé, seu babaca!!!”. Ele adorava. Em adultos, não era raro, ele aplicar um uppercut (Vá pro Google!!!) na altura do baço ou do rim e fazer pose de Cassius Clay com 50 quilos.
Dito isso. Vamos à razão do título.
Meus pais já estavam, havia muito tempo, separados. Era noite, ele me ligou:
-Filhão, amanhã, você tem algum programa para fazer depois da faculdade?
-Não, o que houve?
-Nada, depois de amanhã o Brizola vai à Arraial do Cabo inaugurar um CIEP. Amanhã, eu e Deraldo vamos para lá depois do almoço, vemos a inauguração, o discurso, dormimos lá numa casa dele e voltamos pela manhã. Topa ir com a gente?
Topei na hora. Nos anos 80, Lelé tinha se embrenhado na política partidária. Nessa época, eu ainda acreditava em bobagens nesse sentido. Eu era universitário, me dá um desconto, vai.

No dia seguinte, eles me pegaram na faculdade, antes mesmo do meio dia. Meu pai, todo empolgado, cheio de lata da Skol no colo, sentado no banco de trás do carro.
-Você vai na frente, filhote!!!
Resolvemos almoçar quando chegássemos em Arraial do Cabo. Meu pai não parava de falar. Da política atual, da sua vida, da menina que comprava pão de shortinho. Depois de mais ou menos meia hora de estrada, já “altinho” de tanta latinha, meio que se esparramou no banco, cabeça virada pra trás.

Percebendo a cena, o amigo, outro tremendo sacana, vislumbrando a chance, me olhou, piscou, diminuiu a velocidade e fingiu uma freada brusca. Eu, de sacanagem, gritei:

  • Cuidado, porra!!!
    Lelé, como uma pulga, salta:
    -AAAAAAAAAAAaaaaah?????!!!!!!!! Vocês dois vão sacanear o caralho, porra!!!! Seus filhos das putas………
    Gargalhada geral por 2 minutos.

Arraial do Cabo, inauguração do CIEP, discurso – também interminável – do Brizola, mais latinhas no fim de tarde, dormimos e acordamos muito cedo para pegar a estrada da volta.

Deraldo diz:
-Vamos parar no Café do Joca na estrada, tem um bolinho de queijo com carne que é do outro mundo. Tomamos café lá.
Mais ou menos meia hora de estrada de volta, ressacado do dia anterior, Lelé novamente se esparrama no banco traseiro, cabeça virada pra trás.

Percebendo a nova chance, Deraldo dá outra piscada pra mim e passa a um palmo de um ônibus que vinha no sentido oposto, causando um som oco e uma baita sacudida no carro. Gritei:

  • Cuidado, porra!!!
    Lelé, como zumbi saindo da tumba:
    -AAAAAAAAAAaaaaaaaaaaaaah?????!!!!!!!! Vocês dois vão tomar no cu!!!! Seus filhos das putas………
    Gargalhada geral. Prosseguimos.

CORTE – CENA VIVIDA POR MIM
Chegamos no Bar do Joca bem cedinho. Vejo apenas um casal numa mesa. Como Deraldo já está se encaminhando para o balcão, me dirijo ao banheiro para o xixi matinal.
Quando estou no fim “dos trabalhos hídricos”, meu pai entra no banheiro, estranhamente olha para a minha cara como se eu fosse um fantasma e grita:
-Filhão, pelo amor de Deus!!! E sai do banheiro, desesperado.
Eu, obviamente, não entendo porra nenhuma. Nem lavo as mãos, saio correndo atrás dele.
Meu pai está abraçando o cara, aquele do casal a que me referi, no balcão e pedindo mil desculpas.

CORTE – CENA VIVIDA PELO DERALDO
Chegamos no Bar do Joca. Eu saio direto para o banheiro, Deraldo sai do carro, cumprimenta o Joca e faz o pedido. O cara que estava junto com a companheira numa mesa – e que, por puro azar, está com uma camisa branca (assim como eu) e tem o cabelo parecido com o meu -, se levanta e vai para o balcão fazer algum pedido. Fica perto do Deraldo.
Lelé, atrasado pelo sono e pela ressaca, sai do carro, meio cambaleante, espreguiça, se dirige ao balcão, calibra o golpe e……………..dá um uppercut nas costelas do cara. Tranquilamente, sai andando para o banheiro.

O cara, contorcido pela dor e surpresa do golpe, olha feio para Deraldo e pergunta:

-Esse coroa é maluco, porra???!!!

Com certeza, era.

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Escritor, DJ e advogado