Por Jolivaldo Freitas
Surripiei o comentário que fiz para a Rádio Metrópole e transformei em crônica pois entendo que muita coisa é gostosa na minha vida, inclusive defender a cultura da nossa gente. Daí que falei no ar que a Lavagem do Senhor do Bonfim é, sem dúvida, um dos maiores símbolos da devoção popular brasileira. É assim todos os anos, no segundo domingo de janeiro, e a festa religiosa que remonta ao século XIX resiste e se reinventa. Eu acho que a reinvenção tem sido mais consequência do turismo. Coincide que é verão e os turistas programam a vinda a Salvador para aproveitar que tem a lavagem, o que é bom.
Por causa deles um hábito voltou, que é algo singelo, que vem, a ser amarrar as fitinhas no punho, a conhecida medida do Senhor do Bonfim, dando o nó, fazendo pedido e esperando que o pedido se realize quando a fitinha ficar esfarrapada e cair. Só que antigamente era mais fácil obter os pedidos, vez que as fitinhas eram feitas de pano e bastava molhar algumas vezes que se esfacelava. Agora é de material sintético. Pra cair rápido só fingindo que foi acidente e cortar ou na maior desfaçatez esfregar numa parede crespa. Se Senhor do Bomfim não estiver ligado, quem sabe.
A festa, como outras do Ciclo de festejos populares de Salvador, claro que une o sagrado e o profano. Lá estão as baianas, vestidas de branco e as falsas baianas que se misturam, responsáveis pela lavagem das escadarias por que a do adro ficou proibida. Vão deixar este ano? Duvido. A Igreja Católica é cruel e não volta atrás nem com a ira divina.
Se falta os jegues enfeitados conduzindo as carroças apinhadas de gente, coitados, se as bicicletas ornamentadas quase que sumiram, se faltam os caminhões levando as batucadas e os cachaceiros, ainda sobra água perfumada, o aroma de alfazema e o som dos atabaques que se misturam ao cortejo e ao cenário para uma verdadeira celebração da cultura baiana.
Depois da chegada do cortejo e da lavagem o jeito é correr para as barracas que estão feias, padronizadas, tirando o colorido variado que as caracterizavam e cada, nos outros tempos, querendo ser mais bonita que a outra e os bancos pintados nas cores fortes de cada uma – que era também para um barraqueiro não levar os bancos dos outros, coisa que podia terminar em porrada -, faziam um mosaico muitíssimo bonito, digno de um ensaio fotográfico. Muitos fotógrafos o fizeram e aqui rendo uma homenagem a alguns fotógrafos que registraram o auge da festa e que me perdoem os esquecidos, mas é a memória, uns que já se foram e a maioria ainda clicando. Trabalhos belíssimos para os jornais feitos por Milton Mendes, Carlos Catela, Lajopa. Lázaro Torres, Gildo Lima, Bereta, Carlos Santana, Valdir Argolo, Arlindo, Renato Almeida, Jorge de Jesus, Manu, Oldemar Vitor, Antônio Queirós, Aristides Batista, Loriel Barbosa, Paulo Neves e Margarida Neide. E são vários em variados estilos.
As baianas, figuras essenciais da celebração, desempenham um papel que vai muito além de simples participantes; elas são guardiãs de uma tradição que atravessa séculos. Com seus panos brancos, adornados com detalhes coloridos e suas ânforas, seus jarros de água, perfume e flores. Até o turista sabe que ser banhado por uma delas é sinal de sorte e proteção. A Lavagem do Senhor do Bonfim não é apenas uma manifestação religiosa, mas uma grande celebração da vida e da identidade baiana. Um rito coletivo. Quem tem fé vai a pé, diz o slogan criado por um publicitário baiano, que sintetiza tudo. Eu é que não tenho coragem mais de ir.
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Escritor e jornalista. Especialista em marketing político