Um gol de placa em favor da cultura

  • Post category:ARTIGOS
No momento você está vendo Um gol de placa em favor da cultura

Por Joaci Góes

Para a amiga Cleide Nunes Souza!

            Gregos e baianos concordam que a Bahia vive um período de consolidação de várias crises, a mais grave das quais sendo o baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de sua população, vitimada pelo elevado nível de criminalidade que a atormenta, baixa escolaridade, os mais altos números de tuberculosos, chagásicos e morféticos, pior nível de escolaridade pública, além do maior número de favelas e de pessoas sem saneamento básico. Ultimamente, o patrimônio cultural baiano vem sofrendo duros golpes, vitimado pelo descaso de que o maior exemplo foi o desmoronamento do teto da Igreja de São Francisco, coberta de ouro, o maior monumento do barroco arquitetônico no Continente Americano.

            Meio a contexto tão vexatório, volta à tona a ideia da construção do Museu da Libertação, na Chácara Boa Vista, em Brotas, defendida, há anos, pelas maiores instituições culturais do Estado como o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, a Academia de Letras da Bahia, a Universidade Federal da Bahia, a Academia Baiana de Educação, a Academia de Letras Jurídicas da Bahia, a Academia de Letras e Artes de Salvador, a Ordem dos Advogados do Brasil, O Instituto dos Advogados do Brasil, a Academia de Ciência da Bahia e o Museu Nacional da Cultura Afro-brasileira. A Chácara Boa Vista é entre as cinco casas onde Castro Alves residiu, em Salvador, a mais vinculada à sua rica memória, pelas razões a seguir:

1- A Chácara Boa Vista, nome original da propriedade em pauta, a quarta residência, foi a casa onde, por mais tempo, morou Castro Alves – a partir de 1858, quando seus pais para ali se mudaram, deixando a casa da Ladeira do Pelourinho, número oito, com o propósito de curar a tuberculose que, no ano seguinte, viria a matar sua mãe, D. Clélia Brasília de Castro Alves. Aí, portanto, foi onde Castro Alves amargou a maior dor de sua genial infância;

2- Foi na Chácara Boa Vista onde Castro Alves concluiu seu livro Os escravos, quando ali se instalou, transferindo-se do Hotel onde se hospedara, na praça que hoje leva o seu nome, com a atriz Eugênia Câmara, a grande paixão de sua vida. Castro Alves chegou à Chácara envolto no laurel da triunfal apresentação do drama O Gonzaga, concebido desde o verdor dos treze anos;

3- Foi na Chácara Boa Vista que Castro Alves compôs alguns de seus mais famosos poemas, como A Boa Vista, Sub tegmine fagi, Quem dá aos pobres empresta a Deus e Ao dois de julho;

4- Comparadas às homenagens prestadas aos maiores nomes da literatura dos povos, as que a Bahia dedicou a Castro Alves, não obstante grandes,  são consideradas modestas, como o batismo com o seu nome de um município, a praça que o governador Seabra batizou com o seu nome, no dia 02 de julho de 1923, o Teatro Castro Alves, no Governo Antônio Balbino e o Parque Castro Alves, em torno da casa onde nasceu, criado pelo secretário da Educação, Edvaldo Boaventura, nos governos Luís Viana e João Durval Carneiro, no hoje município de Cabeceiras do Paraguassu;

5- Além de ser a casa onde Castro Alves viveu a maior parte de sua breve existência, a Chácara Boa Vista pertenceu, originariamente, a um dos maiores traficantes de escravos da história do Brasil, criando com o poeta da libertação curioso e atraente contraste. Só esta singularidade seria suficiente para instalar-se, ali, o Museu da Libertação, pagando-se uma pequena prestação do irresgatável débito que a Bahia contraiu com os nossos irmãos afrodescendentes;

6- Foi na Chácara Boa Vista, transformada em nosocômio, a partir de quando a adquiriu o Estado da Bahia, onde passou 14 anos internada, na mais completa e apaixonada loucura, Leonídia Fraga, a musa infeliz de Castro Alves, conforme título da obra biográfica sobre ela, escrita pela imortal poeta Miriam Fraga que nos deixou em 2016. Leonídia Fraga, autodenominada a Noiva, trinta meses mais velha do que Cecéu, apelido do poeta, seu companheiro de infância, amou-o de modo tão apaixonado que enlouqueceu, a partir de sua morte precoce. Em O hóspede, considerado por muitos o mais belo poema lírico da língua portuguesa, Castro Alves deu voz, de modo inédito, ao amor não correspondido que Leonídia nutria por ele. Quando a já octogenária Leonídia Fraga foi encontrada morta em sua cela, no antigo hospício Juliano Moreira, em 1927, 56 anos depois da morte do seu amado poeta, a trouxinha da qual não se afastava para nada, continha o original dessa poesia única, bem como outras que a ela Cecéu dedicou, em papéis amassados que nosso desleixo para com a memória dos verdadeiramente grandes deixou que se perdessem;

7- A ideia central é fazer desse tão necessário e já tardio museu o maior repositório das lutas travadas para rompermos os grilhões da escravidão.  Além do quanto se puder reunir como testemunho material da chaga da escravidão, em nossa história, o registro dos nomes de todos que contribuíram para nossa letárgica abolição, como o Poeta dos Escravos, Zumbi dos Palmares, Luiza Mahin, Luís Gama e intelectuais que fizeram de nossa matriz africana tema de suas criações literárias, nas mais distintas vertentes epistemológicas, como Luís Anselmo da Fonseca, Juliano Moreira, Gilberto Freire, Luís Viana Filho, Edison Carneiro, Kátia Queiroz Mattoso, João José Reis, Ana Maria Gonçalves, Raymundo Laranjeira, Lidivaldo Britto e muitos outros nomes. O melhor das modernas técnicas computacionais deve ser incorporado aos elementos tradicionais tangíveis, para fazer desse notável empreendimento fator de grande impacto na estrutura dos inúmeros atrativos que engrandecem nossa terra aos olhos do mundo.