Por Alcione Bastos
Para onde vão todas as palavras que não dizemos ao outro, mas pensamos? Esse tema sempre me ocupou seja enquanto profissional nos atendimentos quanto em minha própria experiência pessoal. Deixamos de falar muito mais do que falamos, apesar de pensarmos. Mesmo quando o outro não está presente, as coisas que pensamos, observamos e vivenciamos mas que não foram ditas continuam lá numa espécie de depósito interno de palavras e sentimentos misturados. Nunca desaparecem.
Nesse depósito que é uma espécie de quarto de despejo, misturam-se impressões que temos sobre os outros, opiniões que queríamos ter falado mas guardamos e vamos acumulando, quem sabe um dia diremos, e esse dia nem sempre chega a tempo. Jung chamava de complexo. Cada complexo tem um núcleo e a esse núcleo vão se acoplando mais e mais palavras, oriundas dos nossos pensamentos e sentimentos.
Vejamos uma cena comum que se repete. Início de relacionamento, duas pessoas encantadas, querendo que dessa vez dê certo. De repente, uma frase que não faz sentido para você e que é dita com convicção pela outra pessoa. Um trejeito, um conceito que para você é um preconceito, uma reação a algum fato e seu depósito se enche de palavras pensadas e não ditas.
Muitas coisas deixamos de falar para não estragar o clima, outras vezes pensamos que “aquilo” seja o que for, é um mínimo detalhe e que seria uma falta de educação falar. Exemplo: um dia você percebe um mau hálito; a forma de se portar à mesa; um trejeito meio cafona; um gosto musical esquisito. A lista é interminável. Quem nunca passou por esse tipo de experiência?
Ah, você pensa, que bobagem! Não vou estragar esse relacionamento com coisas sem importância! Essa pessoa é tão legal em tantas outras coisas. Uma bomba interna vai sendo armada e os complexos aumentando de tamanho. O tempo vai passando e você acumulando frases inteiras que pensou e não falou. Seu depósito interno vira uma lagoa cheia de girinos e sapos.
Geralmente um relacionamento chega ao fim sem que você tenha conseguido mexer nesse depósito. Nunca me esqueço de uma peça que assisti em São Paulo com Irene Ravache e Marcos Caruso. Eles interpretavam um casal que acabara de se separar depois de mais de vinte anos de casamento. Num determinado momento, ela diz a ele: “Não suportava comer sempre aquela parte do frango que você não gostava!” Ao que ele indignado retruca: “Como assim? Sempre achei que você gostava e eu que adorava, simplesmente abri mão durante todos esses anos, por sua causa!”. Palavras não ditas, apenas pensadas.
No livro “Caderno Proibido”, Alba de Céspedes narra em um diário, escondido a sete chaves, o seu dia a dia e uma das características mais marcantes é como ela escreve tudo o que pensa e sente a respeito das pessoas da sua família e do seu trabalho, sem compartilhar com eles. Ela tem sua opinião sobre todos e sobre tudo mas não fala o que pensa. Tudo se passa a partir da sua subjetividade apenas, gerando uma certa angústia no leitor por perceber que o rumo tomado por ela, poderia ser totalmente diverso do que foi se ela tivesse falado sobre o que realmente lhe ia na alma, sobre o que pensava e sentia.
Se formos analisar o porquê de não falarmos tudo o que pensamos e sentimos, diríamos que é porque precisamos de filtros para nos comunicarmos com as pessoas. Que as pessoas não estão preparadas para ouvir verdades nuas e cruas. Conheço algumas pessoas que fazem isso de forma magistral, utilizando o humor. Dá um tom mais leve para quem sabe usar esse recurso. Infelizmente bem poucos possuem essa habilidade e se forem tentar ser sinceros acabam por machucar o outro. Voltamos para a estaca zero.
Costumo praticar sempre que possível, um recurso que chamo de “senso de oportunidade”. Determinadas coisas só devem ser ditas no momento oportuno. Além disso, a forma de se falar também vai definir como será aceito pelo outro. Na comunicação não violenta, Marshall Rosenberg nos ensina estratégias para que não sejamos agressivos ao falarmos com as pessoas e adotemos uma comunicação elegante.
Nem sempre conseguimos aplicar os quatro pilares quando se trata de um relacionamento afetivo. As emoções falam alto, principalmente quando aquele depósito de pequenos girinos já está transbordando de sapinhos. Algumas coisas, pequenos cacoetes do outro, são muito difíceis de serem ditos e certamente ficarão lá até o dia do juízo final. Dito ou não dito, não somem, se acumulam, transformando-se em desaprovação, resignação ou repugnância. E assim, os relacionamentos vão tomando seus rumos.
Muitos casais, revelavam para mim durante o processo de terapia, o quanto estavam insatisfeitos com o outro, sem que tivessem conseguido dialogar e digerir aquelas insatisfações. Elas foram se transformando em desamor que gerou descuido e aos poucos foram se desinteressando pelo outro. Palavras não ditas que foram se acumulando em pilhas de queixumes. Depois queriam entender o que estava acontecendo com o relacionamento. Como fazer para voltar a arder a chama que havia se apagado e virado torrões de cinzas?
Novos pactos podem ser construídos em cima de ruínas abandonadas, mas os complexos estão lá prontos para serem acionados frente a um novo gatilho.
A comunicação precisa ser praticada no dia a dia. Os temas não deveriam ser abandonados no depósito de palavras não ditas, e deixados lá por falta de tempo ou coragem para encarar as diferenças que nos afastam. Sobre essa dificuldade em falar sobre as divergências e incongruências num relacionamento entre duas pessoas de culturas diferentes, é o tema de uma série que estou vendo agora na Netflix. Chama-se: Ninguém quer isso!
Recomendo para quem se identificou com esse texto. Um jovem casal, com bastante divergência cultural, de repente se vê envolvido emocionalmente e precisa lidar com suas diferenças através do diálogo. Depois me fala o que você achou.
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Médica e Sexóloga – @draalcionebastos