As Lições da Criação do Primeiro Tribunal de Contas do Estado de Sergipe

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Carlos Pinna de Asiss e Gilfrancisco

Por Carlos Pinna de Assis
“Pensar e repensar a história é essencial para entender o passado e o presente, e, quem sabe, mesmo a história sendo uma ciência não objetiva, poder-se prever e evitar erros no futuro” (GROHS, Simone Oliveira da Silva, in “O Discurso Histórico e a Manipulação Política no Pensamento de Hannah Arendt”, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa, junho de 2018, acesso na Internet em 01/02/2022.)

O cenário político mundial em meados da década de 30 do Século XX indicava a turbulência causada pela exportação das ideias fascistas e nazistas que vinham sendo manejadas por Mussolini² e Hitler³ desde a década anterior e penetravam em todos os Continentes.

Como contraponto, no campo intelectual, destacavam-se nessa época as ideias em formação de Hannah Arendt (1906/1975) e a experiência trágica da guerra civil no próprio país de José Ortega y Gasset (1883/1955).

“Nuestras convicciones más arraigadas, más indubitables son las más sospechosas. Ellas constituyen nuestro limite, nuestros confines, nuestra prisión.” José Ortega y Gasset (Filosofia de la Razón Vital, Madrid, España, Obras Completas, 10 volumens, Taurus – Fundación José Ortega y Gasset, 2004/2010).

À história que se conta também agora, com tantos anos de distância, deve ser acrescentado o quadro da Administração Pública brasileira à época, em cotejo com o que temos em nosso tempo, para efeito da avaliação da importância do fato histórico que deu ensejo à pesquisa e elaboração da mais recente produção de GILFRANCISCO.

Com efeito, da simplicidade da estrutura administrativa dos estados federados implantada com a Constituição de 19344 evoluímos para o atual Estado Nacional brasileiro no qual realça a importância do Tribunal de Contas muito valorizado na Constituição promulgada em 1988.

A Crônica dos Tribunais de Contas do Brasil ficará devendo a GILFRANCISCO o resultado de sua formidável pesquisa sobre a criação do primeiro Tribunal de Contas em nosso Estado, ainda mais porque nesse fato se aprende um conjunto de lições de educação civil, qualificação política e responsabilidade administrativa na construção do estado democrático de direito.

A primeira lição emanada do episódio político-administrativo ocorrido em março de 1935 é de que a evolução do estado e de suas instituições pode ser impedida pelo despreparo pessoal do governante que tenha a visão limitada dos provincianos e a mente turvada por sentimentos exacerbados de autoritarismo. Esses defeitos de ordem intelectual e moral costumam produzir resultados contrários ao bem comum e à conveniência da república, como se tem visto na crônica dos erros de governo. É, portanto, caso evidente de equívoco político eficiente, diante de providência evolutiva que em outras circunstâncias e outros cenários teve desfecho diverso – senão contrário – com a obtenção de efeitos positivos, duradouros e eficazes.

Sabemos que na mesma época, todavia em campo político-administrativo favorável, o Rio Grande do Sul e o Ceará fizeram o movimento de modernização institucional que Sergipe iniciara em 07 de março de 1935, criando os Tribunais de Contas nos governos de Flores da Cunha5 e de Menezes Pimentel6, respectivamente.

Carlos Pinna de Asiss e GILFRANCISCO
Era a terceira fase de criação dos Tribunais de Contas, iniciada com o Tribunal de Contas da União em 07 de novembro de 1890, do Tribunal de Contas do Estado do Piauí em 1891, seguindo-se o da Bahia em 1915 e o de São Paulo em 1930. A criação do Tribunal de Contas de Sergipe pelo Interventor Federal Augusto Maynard Gomes, tal como revelado agora como fato histórico relevante pela oportuna pesquisa de GILFRANCISCO, não foi um capricho sergipano. Foi a decisão de um estadista, com visão da História e de além-fronteiras, em momento no qual ele próprio disputava o governo constitucional do Estado e sequer cogitou de usar o novo órgão como massa de manobra para sua eleição.

A segunda lição que nos traz esta obra tão oportuna e didática é a de que não bastam à relevância do órgão criado e a substância republicana do propósito para o sucesso do desiderato governamental. Será sempre necessário que sejam estabelecidas as condições político-administrativas para que a entidade nova possa brotar, crescer e frutificar.

Exemplo disso foi à criação do atual Tribunal de Contas de Sergipe pelo então Governador Lourival Baptista em 1969. Diferentemente do Tribunal anterior agora revelado, a atual Corte de Contas sergipana foi instituída sem concessões pessoais do fundador, contudo sobre base político-administrativa adredemente preparada, o que permitiu sua afirmação nos mais de cinquenta anos de atuação ininterrupta.

A terceira e principal lição ministrada pelo Professor GILFRANCISCO é o da força intrínseca de renovação dos organismos institucionais bem construídos.

Há quase vinte anos assinalei esta constatação ao apresentar a obra “O Novo Tribunal de Contas”, publicada pela Editora Fórum em 2003, composta por informações que transcendiam as bases constitucionais explicitadas no Direito Comparado e preconizavam uma missão para os Tribunais de Contas cujo cumprimento pode agora ser certificado nas obras que se seguiram confirmando essa assertiva.7

Finalmente, a quarta e definitiva lição da pesquisa e deste consequente livro de GILFRANCISCO é a de que a timidez no combate ao erro governamental causou dano irreparável ao propósito sadio a até mesmo à consideração histórica do fato manipulado com desenvoltura pelo governo em estreia, tal como claramente se enxerga no episódio da criação do Tribunal de Contas sergipano em 1935, com lamentável atraso na implementação do órgão novo e de grande importância para a administração, neste caso postergada injustamente por mais de três décadas, mercê de discurso histórico distorcido e inverídico que prevaleceu ao longo das décadas.

Como se verifica no fato histórico objeto deste relato, a defesa da tese virtuosa somente foi operada pela inconformidade dos membros do Tribunal de Contas então nomeados que, embora atraiçoados por advogado que cometeu da tribuna o mais grave dos delitos profissionais que é a infidelidade no mandato, tiveram a coragem de sustentar a verdade de fato diante da qual, todavia prevaleceu a manipulação política e a ocultação. Em verdade, os registros da construção do sistema de controle externo das contas públicas no Brasil não levaram em conta o pioneirismo de Sergipe na segunda onda de criação dos Tribunais de Contas.

Como exceções, apenas na obra coletiva “O Pensamento Vivo do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe” (organizada por Luiz Antônio Barreto, edição TCE/SE, impressa em 2010 na Editora J. Andrade, Aracaju) se encontra tímida menção ao fato da criação malograda do Tribunal de Contas sergipano em 1935, e artigo publicado por GILFRANCISCO, como primícia da obra de pesquisa e história agora concretizada, tal como se tem no nº 68 da Revista do Tribunal de Contas, publicada em 2018.

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8(A) “Tomada de Contas Especial”; Edição Brasília Jurídica; 1988; Jorge Ulisses Joroby Fernandes; pgs. 387/390. (B) “Rui Barbosa e o Ideal do Tribunal de Contas”; Editora kelps; 2001, Goiânia; Eurico Barbosa. (C) “O Tribunal de Contas”; Editora Almedina; Lisboa; 1988; José F. F. Tavares; pgs. 107/109.

Afinal, pior que o erro foi o esquecimento; e o prevalecimento da versão contrária à iniciativa virtuosa do governo de Maynard Gomes que se permanecesse no comando do poder executivo estadual teria dotado Sergipe de um importante instrumento institucional de governança, como agora se diz. Assim aconteceu no Rio Grande do Sul e no Ceará, governados por estadistas intelectualmente destacados em suas comunidades, como exemplos de homens públicos brasileiros.

Em fevereiro de 2022.

(Texto de Apresentação do livro de GILFRANCISCO, “Criação do Primeiro Tribunal de Contas do Estado de Sergipe”, a ser lançado este mês na Sexta Cultural do TCE)