E houve luz

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Por Martha Guedes

Nasci pela mão de Mãe Messias, como tantos que nasceram antes e depois de mim, naqueles tempos de pouca ciência e mais experiência. Doutor Milton chegou e  atestou que tudo estava bem, segundo a ordem natural. Lembro da luz tímida e oscilante, que sem dúvida provinha do candeeiro de louça inglesa, com flores delicadas em rosa e azul, herdado da avó Aurélia. Talvez, a chama de um fifó auxiliar num canto qualquer do quarto tornasse mais imprecisa a hora em que revelei, enfim, o meu ponto de vista de puro descontentamento com tal estado de coisas. Todavia, gostei da luz reconfortante que me vem à lembrança de quando em vez e me traz sossego, após momentos de inquietude.

Nem é preciso dizer que esta história, relatada a familiares e colegas de escola, provocou sempre risos e observações jocosas de incredulidade. Uma única pessoa acreditou, o que é suficiente para que me sinta respaldada na convicção de que sou um ente normal, pensante e possível no âmbito das ciências que têm a psique como objeto. Este ouvinte, Luís, era um psicólogo do Rio, a quem conheci num momento em que, na calçada, olhei para um lado e para outro, a decidir qual direção tomar tanto na rua quanto na vida. A Luís e a namorada, que me indagaram a rua de Salvador, informei qual era. Em poucos minutos, estávamos tomando café, como velhos conhecidos. Luís me ouvia e, entusiasmado, acatava o relato, justificando-o à luz não apenas do candeeiro de Vovó Lelé e da lamparina coadjuvante, também nos lampejos reveladores da psicologia.

Lembro dos meus primeiros passos, que foram dados na casa onde passamos a morar. Mais espaçosa e iluminada que a casa anterior de planta tradicional e paredes geminadas com as casas vizinhas, essa que foi a minha verdadeira morada tinha janelas envidraçadas que revelavam, ao clarão da lua, figuras estranhas na textura das paredes. Dentre elas, a silhueta abjeta do Bicho Papão, sempre acompanhada do som paralisante de duas notas musicais repetidas e a gélida nota final, dissonante e prolongada.

Na sala de visitas, o lustre de vidro art déco não prescindiu da companhia do candeeiro inglês. Teve ainda um novo auxiliar, um Aladim de alumínio sem charme nenhum, mas eficaz em afastar papões e fantasmas, quando a luz do motor a diesel se apagava às dez horas.

Vivo a alternância de luz e sombras e, muitas vezes, em total obscuridade. O neon e o led jamais foram capazes de envolver e consolar. Nem aquecer, como a  brasa crepitante do velho fogão a carvão alemão, onde Papai, o primeiro a acordar, punha a ferver a água do café. Brasa que lançava sobre as paredes da cozinha claridade instável e morna, meio noturna meio diurna. Que me cubram com um manto luminoso e cálido assim, agora que estou quase a dormir.
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Articulista. Viajante solitária.