Por Eliecim Fidelis
Alguns fatos inusitados divulgados recentemente na mídia levam-nos a questionar suas causas e consequências. Embora inusitados, fatos de natureza similar ocorrem com frequência na era da valorização excessiva da imagem.
Não nos parece algo estranho, ou mesmo irracional, o registro do aumento de conflitos calorosos culminando em lutas corporais dentro de aeronaves comerciais em pleno voo? Ora, acham os valentões de plantão que, ao provocarem seus suicídios, podem igualmente tirar a vida de outrem?
E o lamentável caso da empresária bilionária que está em coma hospitalar há oito anos, e vive arrodeada de brigas e acusações entre advogados, familiares e cuidadores que mais parecem preocupados com o abastado patrimônio a ser herdado. Há algo inusitado nisso?
Não parece estranho o fato de uma criança de dois anos de idade, com paralisia cerebral, ser maltratada pelos pais e exposta na mídia com a finalidade específica de conseguir seguidores e ganhar dinheiro?
Pode não parecer, mas há um fio condutor entre os fatos citados e tantas outras ocorrências parecidas que surgem na atualidade. Esse fio, que bem caracteriza o laço social contemporâneo, pode ser definido naquilo que o psicanalista francês Jacques Lacan chama de amódio, para falar das faces inseparáveis da mesma moeda das paixões do ser: o amor e o ódio.
Para ficar apenas no caso mais chocante entre os enumerados, vale registrar as pérolas de expressões do pai da criança, ao ser questionado. Pasmem! “Estão me acusando que criei conteúdo para viralizar na internet; não me afeta nem um pouco”. Ou ainda: “Eu não pensava que uma criança que só tem dez por cento do cérebro funcionando fosse tão chata e pudesse me dar tanto problema”. E, enfim, “Quem não tem filho deficiente para explorar, tem que trabalhar”.
Pode-se perguntar quais serão as consequências na vida futura de uma criança, sadia ou não, tratada e exposta à mídia dessa forma. Como isso afetará sua estruturação psíquica como ser humano? Trata-se de uma situação em que esses pais, ao exporem sua cria, criam mentiras para si e para terceiros, e na medida em que as compartilham, na era da pós-verdade, tais mentiras se propagam como fatos de realidade. Quem sabe esses pais não se deem conta de que os algoritmos captados pela inteligência artificial onde plantam suas mentiras revelam suas verdades mentirosas e escancaram seus próprios rastros digitais. Em se tratando de uma criança em tenra infância, pode-se pensar numa consequência como aquela descrita por Nathaniel em carta ao amigo Lothar:
“… uma fatalidade obscura (…) que pôs um véu turvo de nuvens sobre minha vida, que eu talvez só consiga rasgar ao morrer”. (E.T.A Hoffmann, em O homem da areia).
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Psicanalista e escritor, membro do Espaço Moebius.fidelis.eli@gmail.com