Quem bate? Será o Benedito?

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Por Martha Guedes
Toda manhã, um anjo invisível descia para reger o coral da passarada multiforme. Os trinados, alternados pelo solo de um barítono alado a quem jamais pude identificar, traziam ao ouvido a doçura do canto infantil e se faziam acompanhar de raios de luz, que adentravam o quarto pelas frestas do telhado e dos caibros da parede de taipa.
Hora de levantar, lavar o rosto na bacia esmaltada e escovar até mesmo os dentes que estavam a nascer, antes de dar graças a Deus pelo excelente café, colhido, torrado e moído ali mesmo, na fazenda nomeada por Vovô, não sei por quê, Guaraná, pois nenhum desses arbustos estranhos, cheios de olhos, vi ao redor e nem soube estar escondido na mata próxima, onde até onça havia. Portanto, bastava à curiosidade que a inspiração proviesse do guaraná Fratelli Vita e toda dúvida que porventura restasse se anularia na efervescência doce e amarronzada, sorvida na próxima festa de aniversário.

Naquele pedaço de terra onde plantas e animais pareciam entoar um hino de louvor constante a quem os criou, brilhava em prata cada folha, nas humildes culturas das grotas que prolongavam o quintal das casas. O alimento, produto do trabalho árduo, era garantido sempre pela natureza fértil do solo escuro. Eu me encantava com os frutinhos vermelhos dos pés de café, com a gameleira imensa que teria sido plantada, não se sabe por quem, num passado nebuloso. Sob a copa majestosa dessa árvore, algum tempo depois, comemoraram-se os oitenta anos de Vovó.
Não eram frequentes minhas visitas ao Guaraná. Mais felizes, meus irmãos puderam vivenciar melhor a alegria de explorar cada recanto, ouvir os casos contados por nosso tio Manuel, o querido tio Baé, uma das melhores pessoas a quem conheci em toda a vida. Eram histórias engraçadas, acompanhadas de mímica, em que não faltavam almas penadas e outras aleivosias, que faziam parte do repertório anedótico da família. Tio Baé era casado com uma das irmãs de Mamãe, tia Else, que optou por viver na fazenda, assim como três outros tios.

A mais longa experiência que tive do Guaraná não durou mais que dez dias. Vovô há muito havia nos deixado e Vovó passou a morar com nossa tia Maura, na casa da Bonita, vilarejo sob jurisdição da comarca de Mundo Novo, na Bahia. Entre a Bonita e o Guaraná, foram vividos os últimos anos da aventurosa e relativamente curta existência de Vovô. Com atributos que o tornariam facilmente em exemplo de líder carismático, Vovô exerceu a função de juiz de paz e ajudou a fundar a igreja presbiteriana local. Patenteado como capitão da Guarda Nacional, jamais recebeu instrução militar ou pôs os pés num campo de batalha. Teve formação católica rígida como aluno de um colégio de padres, onde foi até sacristão. As convicções se abalaram ao hospedar, por dever de gentileza, missionários americanos que vieram à procura de lugar onde pudessem fundar igreja e escola. O irrequieto e curioso anfitrião ouviu com satisfação sobre técnicas agrícolas e novidades tecnológicas afins. Nada sobre religião. Os americanos partiram, mas retornaram algum tempo depois. Moysés de Senna Bastos abjurou o catolicismo.

A cabana primitiva
A casa de tia Else, onde passei aqueles dias de puro encantamento, mantenho íntegra na memória. O contato frio com o piso de lajotas oitavadas, o calor do fogão a lenha onde panelas de esmalte azul fervilhavam e, no forno, bolachas finíssimas receita ensinada a Vovó pela professora americana douravam, o pequeno quadro negro da sala, que servia para a educação dos meninos da fazenda e de fundo para versículos bíblicos, extratos literários e, até mesmo, “recados” de tia Else aos visitantes incômodos e inesperados, tudo compunha de modo harmonioso o interior da habitação rústica, que poderia de certa forma ilustrar alguma edição da obra do abade Laugier, Ensaio sobre a Arquitetura, um apelo de retorno à simplicidade essencial nos princípios arquitetônicos contidos na cabana primitiva.

O que de mais extraordinário e emocionante havia para mim era a casinha de bonecas da prima Elsinha, construída em taipa, no quintal. Tinha tudo o que era necessário à existência cômoda de qualquer boneca de pano ou baquelite, alheia às exigências de uma Barbie citadina: fogão a lenha, panelinhas de barro e lamparinas de latas ou de garrafinhas de vidro, graciosos fifós, de luz suave e trêmula. A altura da casa permitia, a mim e às primas menores, entrar facilmente em cada cômodo. A Elsinha, não mais.

De volta à casa da família, reconstituo um prolongamento frontal, espécie de varanda, onde tio Baé guardava selas, arreios, cestos e todo o equipamento de trabalho na lavoura. O cômodo me parecia inacabado, algo semelhante a um quarto transversalmente cortado. Contíguo ao depósito dos petrechos de tio Baé, havia um quarto sem camas, pensado talvez como dormitório de hóspedes, onde se guardava em caixas o que não estava em uso. Bonecas e outros brinquedos, que também pertenceram a Miriam, prima já adulta, preenchiam uma dessas caixas. Miriam me revelou aquele tesouro, do qual retirou um bonequinho preto. Era Benedito. Tremi de emoção.

O Guaraná é hoje um povoado habitado por pessoas que não pertencem à família. Nas casas não há fogão a lenha nem lamparina de lata de azeite. Não se conversa à beira do fogo, mas no WhatsApp, por áudio.

Talvez fosse esse o destino, previsível desde quando Joventina, tendo ouvido comentar sobre o lançamento do Sputnik, confirmou em genuína explosão:

Eu vi! Vi, sim! Estava no terreiro, quando ele passou baixinho entre minha casa e a casa de Comadre Fulô!
As casas das comadres distavam poucos palmos uma da outra. Assim era o Guaraná, a extensão no tempo e no espaço _ da pré-história, como atestam os pedacinhos de cerâmica com vestígios de pintura e decoração ungulada, retirados acidentalmente do solo por tio Nelson, ao percurso do foguete russo, no interstício das casinhas quase geminadas de Joventina e Comadre Fulô.
A nova ordem do pensamento determinou que a gameleira teria de dar lugar ao poste da rede elétrica. Cumpriu-se o mandado da prefeitura. Derrubada a árvore colossal, o poste foi colocado além. Muito além do sonho.
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Viajante solitária.