Por Marcelo Pockye
Acordei com medo. Esse medo específico era a concretização de uns oito meses de preocupação desde a notícia. Era cedo, hora marcada.
“Meu Deus, cadê meus amigos? Cadê minha família original?”.
Dirijo na ponta dos dedos, todos os dedos. A conversa, por mais que se tente algo diferente, é nervosa, mesmo que permeada de risos. Estou nervoso e com medo, muito medo. Eis aqui um homem com 39 anos todo moído e tremido por dentro.
Chegamos. Fotos de todos os jeitos. Será que escolhi a roupa certa para o momento? Como vou me sair? Como vai ser isso tudo? Hora de preencher a papelada. Minha assinatura é insegura. Quais são meus dados? Quem sou eu numa hora dessas?
“Meu Deus, cadê meus amigos? Cadê minha família original?”.
Tenho que trocar minhas roupas. Entro numa sala pequena, com vários armários. “Porra, nada entra. Como se coloca isso mesmo?”. Minha habilidade é prejudicada pela extrema apreensão. Consegui, afinal. Pareço um doido de verde e branco e uma câmera fotográfica pendurada.
Agora estou numa outra sala, sozinho. Tem uma televisão e ela é a cabo. Puxa, é época do torneio de Wimbledon, acho o canal, começo a assistir. “Lindo ponto, linda jogada”. Tento fingir descontração, balanço as pernas, quase me deito no sofá. Passam várias pessoas, cumprimento. Tomo outro café, sem vontade.
“Meu Deus, cadê meus amigos? Cadê minha família original?”.
De repente, o inevitável, uma mulher me chama. Levanto e tropeço, lógico. As pernas estão bambas. Acho que vou encontrar adiante um quadro de preparação para o que espero ver. Aliás, sempre pensamos que as pessoas estão preocupadas com a gente numa hora dessas. Mas, não. Entro na sala de parto e dou de cara com ele nascendo. No meio do caminho, sendo puxado pela cabeça. Aquela mulher super gentil e delicada que fazia piadas no seu consultório se transforma numa gravura de força e precisão na minha memória.
“Pai, tira logo essa foto!!!”. Perco a primeira, arrumo uma força sabe lá de onde e começo a tirar fotos. As imagens estão úmidas para mim. “Quanto sangue, como chora esse cara”. É registrada a hora do nascimento – 10:15 hrs – botam o pé dele num papel. Ele vai para a balança, depois é medido. Olho para uma mesa e vejo uma placa de sangue. “O que é isso?”, pergunto com os olhos. Uma médica entende minha expressão. “É a placenta”. Começo a fazer minha inspeção de pernas, mãos, dedos, tudo. Ele tem tudo. E chora alto pacas. Penso ter tirado umas oito fotos. Olho no visor da máquina, tirei o triplo disso.
Encosto numa parede. “Pai, você está bem?”, me pergunta uma enfermeira. Meu choro é silencioso. Suspiro. O levo para a tia e avó materna verem através de um vidro do restaurante do hospital. O devolvo à sala. Elogiam minha habilidade ao pegá-lo. Não sabem que minhas costas estão arrebentadas de carregar aquele peso mínimo.
“Meu Deus, cadê meus amigos? Cadê minha família original?”.
Chego perto para falar com a mãe. Ela chora emocionada. Fico morrendo de inveja da sua coragem de ser cortada ao meio e estar bem, quase normal. Mãe bem, saio correndo atrás dele, já o levaram dali. Meu chorão e sua sirene bucal têm a melhor maternidade da cidade só para eles. Era época junina, a capital estava no interior. Já nasceu com sorte e nem sabe.
Sete berços vazios e a razão do meu medo em um, sozinho naquela sala imensa. Na verdade, a pessoa mais sozinha do mundo ali era eu. Incrédulo, eu olhava para aquela carinha minúscula que não parava de chorar. Nunca me senti tão agradecido, emocionado e só. Nunca senti tanta falta de alguém ou algo que não sei quem ou o que é.
“Meu Deus, cadê meus amigos? Cadê minha família original?”.
Amigos? Família? Que lição. Tive o meu primeiro contato direto com Deus e aprendi a me comunicar com Ele através do silêncio e solidão que me foram proporcionados ali naquelas horas. Ele me deu esse presente e me transformou em outra pessoa. Tenho certeza que Ele projetou para mim esse filme.
Um filme que só passa para mim. Só.
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Escritor, advogado e DJ